quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Cecy Barbosa Campos (Os serões)

Larissa não era exatamente bonita, mas possuía uma beleza que transcendia. Ela ainda acreditava no ser humano e sempre conseguia enxergar em seu semelhante alguma qualidade.

Sua vida não era nada fácil. Morava num quartinho pequeno com banheiro. Era anexo à casa principal, onde uma sua amiga trabalhava. Como não dormia no emprego, conseguiu que seus patrões alugassem os dois cômodos, por um preço módico, para Larissa.

Todas as manhãs, Larissa tomava o ônibus bem cedo, rumo à fábrica de tecidos onde trabalhava. O percurso era longo, os engarrafamentos constantes, e ainda poderiam surgir outros problemas no trânsito, principalmente se chovesse. A moça, que era muito disciplinada e temia chegar atrasada, saía com bastante antecedência e, durante o trajeto, tinha tempo suficiente para sonhar.

Sonhava com o dia em que conheceria um homem respeitoso e gentil, que cuidaria dela e a protegeria. Sonhava com o seu futuro, a cuidar dos filhos, da casa e do marido.

Acreditou que seu sonho estava prestes a se realizar, no dia em que conheceu Jurandir. Trabalhador e atencioso, não podia se encontrar com ela todas as noites após o trabalho, porque tinha que enfrentar longos serões na firma, o que lhe valia como horas extras. Também, nos finais de semana, fazia "bicos" como vigia de residências quando os proprietários viajavam.

Larissa, embora entristecida, achava lindo ver o homem que amava e que acreditava ser um marido em potencial, lutando por um futuro melhor. Quando não podiam se encontrar, Jurandir passava pela fábrica, à tardinha, ao final do expediente, para levar a namorada até o ponto de ônibus, passando antes numa lanchonete e fazendo que Larissa tomasse uma vitamina de frutas e abandonasse o refrigerante, sempre solícito em relação á saúde da amada.

Criada no interior, dentro de rígidos preceitos religiosos, Larissa tinha um comportamento bastante diferente do que era habitual na cidade grande. Preocupava-se com a virgindade antes do casamento, não gostava de exageros nas roupas e na maquiagem e primava pela discrição de suas atitudes. Jurandir mostrava-se encantado e sempre elogiava sua observância aos princípios em que fora criada.

Como quase não saía de casa por causa das ausências de Jurandir, este incentivava-a, carinhosamente, a passear no shopping ou visitar algum parente para se distrair. Foi assim que num sábado, Larissa decidiu-se a participar de um churrasco em comemoração ao aniversário de uma colega da fábrica.

Chegando ao subúrbio, desceu do ônibus e verificou as instruções que tinha anotado sobre o caminho a seguir. Não era longe, mas tinha que prestar atenção ao intrincado das ruas, pois não conhecia a região. De repente, procurando a placa para verificar se estava na direção certa, distraiu-se e esbarrou num menino que de mãos dadas com o pai, seguia à sua frente. A mãe, em adiantado estado de gravidez, de braços dados com o marido, levava pela mão a filha menor, uma menina com rosto de boneca emoldurado por cachinhos dourados.

Assustaram-se todos, virando-se instantaneamente para aquela estabanada que quase derrubara o garoto vestido com a camisa do Flamengo. Quando os olhos de Larissa encontraram-se com os atônitos olhos de Jurandir, ela deu um grito de horror e pôs-se a correr, desvairada.

Sem nem pensar no churrasco, voltou para o ponto de ônibus e prorrompeu num pranto convulsivo que confundiu, penalizou ou irritou a todos os passageiros.

Chegando ao seu humilde quartinho, lançou-se à cama sem interromper o choro incessante que a deixava quase sem ar.

As horas se passavam. Não sabia quantas. Quando começou a escurecer, bateram à porta. Sem pensar nada, levantou-se da cama e semi-torporizada foi abri-la. Jurandir entra, toma-a nos braços e seca suas lágrimas com beijos apaixonados. Dá uma série de explicações confusas e não convincentes. Porém, estava ali, abraçado a Larissa, que não tinha forças para rejeitá-lo.

Criou-se uma cumplicidade estranha entre as duas mulheres de Jurandir. O tempo livre do homem, que era muito pouco, tinha que ser cuidadosamente dividido entre as duas, pois agora, os serões se tinham tornado extremamente necessários, para que ele pudesse manter as duas famílias.

Larissa teve um casal de gêmeos e, logo depois, engravidou novamente. Não poderia perder na competição e dar a Jurandir três filhos era uma questão essencial.

Os conhecidos de Jurandir estranhavam aquela situação insólita e se perguntavam qual seria o charme daquele homem para conseguir controlar as duas mulheres que, pacificamente, aceitavam fazer a divisão democrática do marido.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

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