COMO DESENHAR O VENTO
Antes do vento
você deve sentar-se à beira
tomar gosto por coisas voantes
saber distinguir o barulho de asas ao longe
cuidar para não colocar os pés sobre as miudezas do reino
então olhar o horizonte devagar
bem devagar
de um modo tão específico
que seja possível traçar as inquietudes do sopro.
– Sim, todo vento é uma soma incalculável de sopros,
cada sopro
uma ondulação da vida feita de sopros,
quem sabe de algum deus
[mas não te enganes, não o teu Deus, nem o meu Deus!]
Depois do vento
você deve sentar-se à beira
tomar tento por movimentos de dentro
saber conhecer de nuvens
e divagar
bem devagar
de um modo sereno
como se fora a rotina das borboletas
levando consigo, em saltitantes caminhos,
a lembrança da lentidão das lagartas.
Ainda que o vento não chegue tão cedo
você deve sentar-se à beira
e ouvir o sopro
– o suave murmúrio de um deus
a dizer que viver
não passa de um mero intervalo
entre alguns dos teus melhores infinitos.
Só então terás desenhado o vento.
O sopro.
À beira do teu tempo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =
ENIGMA
Depois dos olhos
– espelhos ou janelas d'alma –
haverei de restar-me inteira
ainda que desfeita a casa da pele que se faz de minha efêmera morada?
Depois do corpo
em que limites do tempo estarei erguida?
Restará identidade, ego, persona?
Como sairei da existência, depois de finda a carne e caídos os ossos de volta à terra?
Depois desse palco
haverá continuidade do ato?
Quem escreverá novo script, roteiro?
Em que cenário atuarei o retorno aos planos das possibilidades dos mundos?
Saberei resgatar minha alma destituída do que em mim transformou-se em ausência?
Haverá presença, certeza, consciência?
Depois do silêncio
serei eu da mesma essência do vento, da água, do sopro,
da luz que, mesmo adormecida, prossegue iluminando a escuridão da semente depois de mim parida?
De que adianta a vida sussurrando rouca à procura de razão
se não aprendemos nada sobre as passagens estreitas que nos espreitam, inquietas,
como oráculos misteriosos, soletrando-nos segredos de outros mundos,
fazendo-nos quase enigmas de nós mesmos
à procura da melhor revelação?
– Será a imaterialidade o melhor lugar de se habitar?
= = = = = = = = = = = = = = = = = =
TÃO INÚTIL QUANTO AS DISTÂNCIAS
Estender os dedos para tocar os céus, sonhar que se está tocando os céus,
como uma oração sem planejamentos, sem palavras.
Tocar os céus com a alma, em súbito desejo de esperança,
como a criança que sonha um sonho intensamente vívido,
porque vívida é a saudade que se alonga entre os olhos de quem fica.
Não adianta dizer que isso também passa,
que tudo passa,
se você ainda não percebeu,
apenas nós somos os passantes
– Você sabe por que passamos?
Porque vivemos fora do tempo
– ou no passado,
escancarando baús de recordações cortantes,
ou no futuro,
angustiando pretensos subjuntivos inexperientes.
Os pássaros não se importam em passar pela vida,
apenas vivem cada dia
como se fora um único e constante voo em direção ao Maior.
As abelhas colhem o néctar para o mel e,
enquanto exercem seu ofício,
não se preocupam com o mel
– por que se afligir com o que ainda não existe?
As estrelas que cintilam no céu já partiram
– somente sua luz ainda está a nos tocar os olhos –
colhemos lembranças tardias de sua imensidão.
Os gafanhotos vivem cerca de míseros oito meses
e, por não o saberem,
nada os incomoda além do momento contido no instante.
– Por que te preocupas com a distância entre teus dedos e a esperança?
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Antes do vento
você deve sentar-se à beira
tomar gosto por coisas voantes
saber distinguir o barulho de asas ao longe
cuidar para não colocar os pés sobre as miudezas do reino
então olhar o horizonte devagar
bem devagar
de um modo tão específico
que seja possível traçar as inquietudes do sopro.
– Sim, todo vento é uma soma incalculável de sopros,
cada sopro
uma ondulação da vida feita de sopros,
quem sabe de algum deus
[mas não te enganes, não o teu Deus, nem o meu Deus!]
Depois do vento
você deve sentar-se à beira
tomar tento por movimentos de dentro
saber conhecer de nuvens
e divagar
bem devagar
de um modo sereno
como se fora a rotina das borboletas
levando consigo, em saltitantes caminhos,
a lembrança da lentidão das lagartas.
Ainda que o vento não chegue tão cedo
você deve sentar-se à beira
e ouvir o sopro
– o suave murmúrio de um deus
a dizer que viver
não passa de um mero intervalo
entre alguns dos teus melhores infinitos.
Só então terás desenhado o vento.
O sopro.
À beira do teu tempo.
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ENIGMA
Depois dos olhos
– espelhos ou janelas d'alma –
haverei de restar-me inteira
ainda que desfeita a casa da pele que se faz de minha efêmera morada?
Depois do corpo
em que limites do tempo estarei erguida?
Restará identidade, ego, persona?
Como sairei da existência, depois de finda a carne e caídos os ossos de volta à terra?
Depois desse palco
haverá continuidade do ato?
Quem escreverá novo script, roteiro?
Em que cenário atuarei o retorno aos planos das possibilidades dos mundos?
Saberei resgatar minha alma destituída do que em mim transformou-se em ausência?
Haverá presença, certeza, consciência?
Depois do silêncio
serei eu da mesma essência do vento, da água, do sopro,
da luz que, mesmo adormecida, prossegue iluminando a escuridão da semente depois de mim parida?
De que adianta a vida sussurrando rouca à procura de razão
se não aprendemos nada sobre as passagens estreitas que nos espreitam, inquietas,
como oráculos misteriosos, soletrando-nos segredos de outros mundos,
fazendo-nos quase enigmas de nós mesmos
à procura da melhor revelação?
– Será a imaterialidade o melhor lugar de se habitar?
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TÃO INÚTIL QUANTO AS DISTÂNCIAS
Estender os dedos para tocar os céus, sonhar que se está tocando os céus,
como uma oração sem planejamentos, sem palavras.
Tocar os céus com a alma, em súbito desejo de esperança,
como a criança que sonha um sonho intensamente vívido,
porque vívida é a saudade que se alonga entre os olhos de quem fica.
Não adianta dizer que isso também passa,
que tudo passa,
se você ainda não percebeu,
apenas nós somos os passantes
– Você sabe por que passamos?
Porque vivemos fora do tempo
– ou no passado,
escancarando baús de recordações cortantes,
ou no futuro,
angustiando pretensos subjuntivos inexperientes.
Os pássaros não se importam em passar pela vida,
apenas vivem cada dia
como se fora um único e constante voo em direção ao Maior.
As abelhas colhem o néctar para o mel e,
enquanto exercem seu ofício,
não se preocupam com o mel
– por que se afligir com o que ainda não existe?
As estrelas que cintilam no céu já partiram
– somente sua luz ainda está a nos tocar os olhos –
colhemos lembranças tardias de sua imensidão.
Os gafanhotos vivem cerca de míseros oito meses
e, por não o saberem,
nada os incomoda além do momento contido no instante.
– Por que te preocupas com a distância entre teus dedos e a esperança?
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Nic Cardeal (Eunice Maria Cardeal), catarinense radicada em Curitiba/PR, graduada em Direito, é autora dos livros “Sede de céu – poemas” (Editora Penalux, 2019) e “Costurando ventanias – uns contos e outras crônicas” (Editora Penalux, 2021). Publicou textos em 46 antologias e coletâneas, no Brasil, na Alemanha e em Portugal. Faz parte do movimento “Mulherio das Letras” desde a sua criação, em 2017. Seus escritos estão compilados na página do Facebook, “Escrevo porque sou rascunho”. Possui textos publicados em diversas revistas e blogs eletrônicos. Também publica, como autora e colaboradora, na revista eletrônica ‘Revista Feminina de Arte Contemporânea Ser MulherArte’.
Fonte:
Poemas e dados enviados por colaboração.
Poemas e dados enviados por colaboração.
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