Além de ser um dos maiores escritores de língua portuguesa dos nossos dias, recentemente agraciado com o prêmio Camões, Mia Couto trabalhou por alguns anos também como jornalista e contribuiu para diversos veículos de imprensa. A maior parte das histórias que compõem Contos do nascer da Terra foi publicada originalmente em jornais e revistas em 1996, e depois adaptada pelo escritor para este livro, que traz ainda um punhado de contos inéditos. Ao todo são 35 histórias breves que se baseiam no cotidiano quase mágico de Moçambique e exploram a sonora linguagem do português africano, revelando na escrita a identidade de um povo e o domínio muito próprio da cultura e da criatividade literária. Vemos aqui essa África que o Brasil tanto proclama como parte de sua própria matriz surgir na forma de contos que dão conta da diversidade e complexidade do mundo que, começando do outro lado do oceano, está tão presente na alma brasileira.
Contos do Nascer da Terra é exatamente um livro sobre começos, inícios, novas chances, agarrar oportunidades, esquecer o passado, viver o presente, sentir saudades do futuro, não se assustar com as estranhezas da vida, se manter na terra, no nascimento…
Aforismos, construções diferentes, muitas metáforas, comparações incomuns. Um texto rico, sobre simplicidades da vida. Assim é Mia Couto, pseudônimo de Antonio Emilio Leite Couto, escritor moçambicano, que nasceu em julho de 1955.
Ter no mundo escritores como ele é como uma grande oportunidade para entender o ser humano, mas de um jeito muito efêmero, pois no final de cada conto do livro Contos do Nascer da Terra, o leitor fica um pouco atordoado, como se tivesse entendido tudo, mas ao mesmo tempo lhe foge a compreensão pelas palavras, pois é um preenchimento que envolve a cabeça e o coração, que avisa a descoberta de algo muito especial, como uma pedra preciosa. Ler Mia Couto é mergulhar em um espaço silencioso e completo.
A linguagem do autor sempre é muito comentada entre admiradores de sua obra. Há inclusive um termo pra designar as construções gramaticais que ele faz e também sobre as palavras que ele inventa, é o FALIVENTAR. Outro termo literário usado para caracterizar as histórias de Mia Couto é o Realismo Animista que dá vida a coisas da natureza, que envolve a poderosa cultura africana.
“A vida é uma goteira pingando ao avesso.”
RESENHA DE ALGUNS CONTOS:
Viúvo
O nome do primeiro conto do livro “Contos do nascer da Terra” chama-se Viúvo e narra a história de um homem muito solitário que “vivia nesse constante apagar-se de si”. Conforme informa o título da história, o leitor irá conhecer o momento em que ele se tornou viúvo e assim, adentrar na difícil tarefa de desapegar-se, mas ele, uma pessoa tão silenciosa, de poucos amigos e sem muitas ambições, fica totalmente perdido com a sua nova condição de vida. Entretanto, o conto é muito além disso tudo que consegui colocar em palavras aqui, porque a força metafórica – e fora do convencional – que Mia Conto consegue empregar em sua linguagem é de uma beleza tão profunda que deixa qualquer leitor atônito.
A menina sem palavra
O conto brinca com metáforas que relacionam sonho e realidade de um jeito muito cru e lúdico. A menina, tão quieta, deixa o pai preocupado, porém, durante uma conversa sobre o mar, a única palavra que a garota uma vez pronunciou, ela e o pai descobrem juntos o poder das águas salgadas, as ondas, os sonhos… De um lado o medo do pai por ter uma filha que não fala, de outro, a criança mostrando ao pai a beleza de seu mundo. Se falar é preciso, que seja por causa de uma boa história.
O derradeiro eclipse
“O derradeiro eclipse”, o terceiro e também maravilhoso conto é sobre um marido ciumento que, antes de viajar, pede ajuda a um padre e a um feiticeiro, sobre o que fazer com a desconfiança que ele possuía sobre a sua esposa, uma mulher “linda de fazer crescer bocas, águas e noites” (p. 13).
Neste conto, é forte a presença de um realismo mágico. O desenrolar da história, a forma que o marido desconfiado busca ajuda e os elementos surreais que aparecem na história, deixam tudo muito belo, poético e, o mais interessante, Mia Couto desenha um cenário simples e deixa toda a complexidade da vida nas atitudes desses personagens, que parecem tão mágicos, mas também possíveis.
A carteira de crocodilo
O conto parece um clássico, com “moral da história” e tudo mais, para mostrar o quanto a palavra é poderosa e, sendo assim, é muito perigosa.
Viver é muito perigoso, já dizia o nosso Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas. Aliás, a linguagem de Mia Couto lembra um dos nossos maiores escritores, que brinca com as palavras de um jeito tão singular, que torna o texto ao mesmo tempo erudito e popular.
Falas do Velho Tuga
Relata uma forte experiência com a cultura africana e seus rituais exóticos. Um senhor, que sabe que está para morrer, conta como foi salvo pelas mãos de uma africana. Mas antes de chegar no ritual em si, vamos compreender sobre a solidão, “me assaltou um vazio como se não houvesse mundo” (p. 23) e então recebemos doses maravilhosas de sonho e realidade, alucinações e medo, com se um ritual africano fosse realmente algo para te colocar em outro mundo.
Governados pelos velhos mortos
Um diálogo muito misterioso, que provoca o leitor a pensar muito diferentes sobre questões tão simples, como o nome de um beija-flor e de uma árvore. Em um mundo desolado e sem esperança, o diálogo caminha para o vazio que mora quando termina a esperança.
“sou homem abastecido de solidões. Uns me chamam de bicho do mato. Em vez de me diminuir eu me incho com tal distinção. Como antedisse: a gente aprende do bicho a não desperdiçar. Como a vespa que do cuspe faz a casa” (p. 28)
“Feliz é a vaca que não pressente que, um dia, vai ser sapato. Mais feliz é ainda o sapato que trabalha deitado na terra. Tão rasteiro que nem dá conta quando morre.” (p. 28)
O indiano dos ovos de ouro
Um conto que possui bom humor, mas também toda a profundidade dos outros contos do livro. Abadalah, o indiano dos ovos de ouro, faz conexão com o clássico infantil, porém, neste caso, “ovos” é no sentido pejorativo da sexualidade do personagem e uma poderosa maldição quando se troca um amor por dinheiro.
“Minha crença é um pássaro. Sou crente só em chuva que cai e esvai sem deixar prova” (p. 29)
O baralho erótico
É um conto muito triste. Um marido violento se dá conta de que sua mulher só vai parar de sangrar, se parar de chorar. Mas ela chora porque ele mesmo bateu nela. E bate todos os dias. E é viciado em jogo, até que um dia, no próprio baralho erótico ele vê algo muito diferente do que poderia imaginar. E o que seria um acesso de fúria, o pior, que cairia diretamente em sua mulher, se transforma em um tipo de arrependimento, redenção, mas com muita vulgaridade.
A casa marinha
O conto parece um sonho maluco. Um velho, conhecido na cidade como louco, leva o narrador da história, um garoto, a caminhos muito diferentes, místicos, o que deixa os pais do garoto preocupados. O velho, como um ermitão, um guru, um monge, algo assim, passa para o garoto ensinamentos profundos por meio de uma linguagem estranha, com rituais e atitudes que, aparentemente, são simples, mas que nutrem grande valia, como procurar por galhos de madeira para construir um barco. A história é uma mistura de contemporaneidade, uma vez que não há a presença de elementos antigos, mas por outro lado, o nosso velho maluco tem alguma coisa de Noé.
“O que o homem tem do pássaro é inveja. Saudade é o que o peixe sente da nuvem.”
“Sono e fadiga: mãos que nos abrem janelas para o mundo.”
“Pois o futuro o que é? Se nem temos a palavra na nossa materna língua para nomear o porvir. O futuro, meu filho, é um país que não se pode visitar.”
Os negros olhos de vivalma
Mais um conto sobre violência doméstica. Vivalma, que possui um nome que já entrega para o leitor um pouco de sua personalidade, é uma mulher que vive com hematomas nos olhos, por apanhar do marido. As amigas do trabalho, ficam muito incomodadas com o sofrimento e também com a aparente inanição de Vivalma e decidem tomar uma atitude. Entre flores estragadas no chão, o mar, uma vida infeliz e conformada, Vivalma coloca o leitor na difícil tarefa de compreender o seu nome e a sua vida, de viva alma.
“A vida é um por enquanto no que há de vir.”
Gaiola de moscas
Um homem que vende a própria saliva para lustrar sapatos. É assim que começa o conto e se isso pode parecer estranho, a sequência dos acontecimentos deste conto é mais maluca ainda. Mas é aquela loucura boa de ler, curiosa, provocante, uma grande metáfora sobre o próprio nome do livro, o que vem da terra, o que nasce, o que transforma.
Há uma mulher triste por não ser beijada pelo marido, há um outro homem que decide comprar as moscas que irão repousar em seu corpo, depois que morrer. Há de tudo… e muitas loucuras, mas um sentido realista sobre a vida.
O homem da rua
Um acidente de carro que coloca dois homens a conversarem sobre a vida. O acidentado buscando vida no motorista que o atropelou, sem querer. E o motorista aprendendo sobre companhia, sobra a noite, o dia, a luz, algum tipo de iluminação surge, que acompanha também o maravilhoso estranhamento das frases de Mia Couto: “o homem sofre de incurável medo de ser noite”, mas a terra nasce, sempre nasce.
“Nem sabe como é bom haver um chão para a gente ter onde cair.”
“O homem sofre de incurável medo de ser noite.”
Contos do Nascer da Terra é exatamente um livro sobre começos, inícios, novas chances, agarrar oportunidades, esquecer o passado, viver o presente, sentir saudades do futuro, não se assustar com as estranhezas da vida, se manter na terra, no nascimento, por isso, e outras coisas que fogem à compreensão lógica, pois literatura é arte, a obra de Mia Couto consegue se manter tão forte em suas características moçambicanas e ao mesmo tempo contar uma história sobre o mundo inteiro.
A leitura de cada conto traz muita intensidade e vivência literária, o que transforma o livro numa leitura cuidadosa e muito especial.
Fonte:
Resenha por Francine Ramos, disponível em Livro & Café
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