quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Carolina da Silva Prado (A chama que se apagou)

Eram quatro horas da manhã. Ele havia acordado de novo, devido ao mesmo pesadelo havia tendo há um ano e meio. Sonhava que sua falecida noiva, Adytia, estava sentada na cama, com aquelas feições angelicais, os cabelos negros trançados, e uma delicada covinha pairando sobre sua bochecha cor de pêssego. Seus olhos âmbar o fitavam, com curiosidade. Confuso, o homem perguntava o que estava acontecendo, e a mulher apenas ria, sem responder nenhuma de suas desesperadas perguntas.

Ele sabia que era um sonho. Sabia, que a qualquer minuto podia acabar, e que, aquele pequeno pedaço de céu, podia partir-se em outros mil pedacinhos, antes que ele pudesse desfrutar daqueles momentos de felicidade, na inocente ilusão da presença de sua noiva. E assim que acabasse, o homem entraria em uma cruel e profunda solidão, na qual predominavam o medo e a negridão, que conforme o tempo, iriam consumi-lo, transformando-o em um homem amargo e sem compaixão.

Fitando Adytia, ele notava que a mulher agora possuía asas, tão brilhantes e macias, talvez até capazes de apagar a solidão que queimava seu coração. Agora a mulher iluminava todo o quarto, fazendo jus a seu nome, que, na cultura hindu, significava sol. Ela passava seus pequenos dedos delicadamente no rosto do viúvo, notava que ele estava exausto, com a barba grisalha por fazer. O homem sabia que sua mente estava sendo cruel, criando uma ilusão de uma das mais belas criaturas, apenas depois, para ver seu coração estremecer, e sentir a dor da perda.

Era agora a pior parte do pesadelo. A parte em que aquela linda e temporária ilusão de Adytia se transformava em uma terrível criatura. Suas celestiais asas começavam a tornarem-se negras, e sua pele a ganhar uma penugem grosseira. A mulher ficava cada vez menor, até se transformar em um corvo. Essa era a hora que a solidão dominava o homem. Um filete de lágrima escorria sobre sua bochecha, e ele apenas se lamentava. Aquele ser não era mais Adytia.

E o que mais o assustava era o olhar daquele animal. Tão negro, tão cru, tão só como um poço sem fim. Ele não tinha expressão. Seu olhar era a verdade. A verdade de que o homem estava sozinho no mundo, sem seu querido sol para iluminar seu caminho.

A verdade de que, mesmo após um ano e meio, ele ainda chorava pela perda de Adytia. A verdade da escuridão de mundo tão cruel e sem vida. Aquele corvo não era mais sua esposa. Agora era apenas um animal, tão silencioso, mas ao mesmo tempo, tão persuasivo. A chama que representava a essência da mulher havia terminado.

O corvo começou a alçar voo, deixando o quarto e mergulhando na madrugada escura e sombria. Agora o homem estava sozinho, e era nesse momento que ele normalmente acordava. Estava em sua cama, suado, com seus cabelos grudados em suas têmporas, e lençóis enrolados em suas pernas. Agora era o choque de realidade, indicando que Adytia nunca esteve ali, e que ele estava sozinho. Que antes, ela era uma fogueira ardente e acesa, e que agora, não passava de chama que se apagou.

Fonte:
O conto brasileiro hoje: vol. XXX. SP: RG Ed., 2013.
Livro enviado por Cynthia Theodoro Porto

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