Dez luíses!
Era tudo que lhe restava!... Eram as últimas moedas da larga e velha herança que até a ele chegara, escorrendo sonoramente, de degrau em degrau, por uma nobre escadaria de avós. Dez luíses!...
E D. Filipe, depois de agitar na mão fidalga, as derradeiras moedas de ouro, encaminhou-se lentamente para o lugar que meia hora antes havia abandonado à banca da roleta.
De pé, apoiado ao espaldar da sua cadeira ainda vazia, deixou cair sobre o tabuleiro verde o seu frio olhar indiferente e altivo. Os números desapareciam afogados no ouro e na prata dos outros jogadores.
Permaneceu imóvel por longo tempo, sem ver o que olhava. Seus sentidos estavam de todo ocupados pelo pensamento que lhe trabalhava aflito dentro do cérebro: - Era preciso refazer a fortuna esbanjada, ou parte dela... Mas com cem mil francos, apenas cem mil! Poderia salvar-se, sem cair no ridículo aos olhos do meio em que se arruinara... Com cem mil francos correria, sem perda de tempo a Paris, solveria as dívidas que ali deixara garantidas sob palavra, e logo em seguida, a pretexto de qualquer exigência da saúde, simularia uma viagem à Suíça e partiria para a América, com o que lhe restasse em dinheiro. Na América engendravam-se rápidas riquezas; descobriam-se dotes fabulosos! Se fosse preciso trabalhar - trabalharia!
Não sabia em que, e como, iria trabalhar, mas a miragem do novo mundo surgia-lhe à imaginação num sonho de ouro; numa apoteose de milagres de reabilitação, em que a sua incompetência para qualquer trabalho produtivo encontraria lugar entre os vencedores. Nenhum programa, nenhuma ideia acompanhava aquela esperança; confiava na América como confiara nas cartas e na roleta. Era ainda uma esperança de jogador. Era a cega confiança no acaso!
Não seria a América também um tabuleiro verde, banhado pelo ouro da Califórnia?... Ele era a moeda jogada num último lance pelo desespero!
Iria!
E, depois?... Como seria belo volver à Europa, muitas vezes milionário, com um resto de mocidade, para continuar a gozar os vícios interrompidos?...
E, enquanto castelavam seus doidos pensamentos, sucediam-se os golpes da roleta, e o ouro e a prata dos jogadores perpassavam em rio por defronte dos seus olhos distraídos.
- Mas, e se eu perder?... interrogou ele à própria consciência.
E o fidalgo não teve ânimo de entestar com a solução que esta pergunta exigia, como se temesse abrir de pronto, ali mesmo, um duro e violento compromisso com a sua honra.
Todavia, se perdesse aquele miserável punhado de moedas, que lhe restava além do... suicídio?... Que lhe restava no mundo, que não fosse ridículo e humilhante?...
E viu-se sem vintém, esgueirando-se como uma sombra pelas ruas escuras, com as mãos escondidas nas algibeiras do sobretudo, fugindo de todos, desconfiado de que a sua irremediável miséria fosse de longe pressentida como uma moléstia infecciosa. Teve um calafrio de terror.
As falazes hipóteses de salvação, que covardemente se lhe apresentavam ao espírito, lembrando amigos ricos e recursos inconfessáveis, eram amargamente repelidas pelo seu orgulho, ainda não vencido.
- Façam suas apostas, senhores! exclamou o banqueiro.
E D. Filipe sorriu resignado e triste, como respondendo afirmativamente para dentro de si mesmo à voz que apelava para seus brios, e, depois de sacudir ainda uma vez as dez moedas, espalmou a sua linda mão inútil e, com um ar mais do que nunca indiferente e sobranceiro, despejou-as na seção do vermelho que à mesa lhe ficava em frente.
- Rien ne va plus!
Uma vertigem toldou-lhe a fingida calma.
A pequena esfera de marfim girava já no quadrante da roleta. Fez-se em toda a sala um silêncio que doía de frio.
Se naquele golpe, em vez de um número vermelho, viesse um número preto, pensou o desgraçado, qualquer mendigo das ruas seria mais rico do que ele!...
E a bola girava já com menos força, prestes a tombar no número vencedor.
O fidalgo deixou-se cair assentado na cadeira, fincando os cotovelos na mesa e escondendo o rosto nas suas duas mãos abertas.
A bola tombou no número. Vermelho!
Os dez luíses de D. Filipe transformaram-se em vinte. E o fidalgo não teve um gesto; esperou novo golpe, aparentemente imperturbável.
O tabuleiro esvaziou-se e de novo se encheu de reluzentes paradas. O banqueiro fechou o jogo; a bola girou, caiu.
Veio outra vez vermelho.
D. Filipe continuou imóvel, sem tirar as mãos do rosto. Sobre os seus vinte luíses derramaram-se outros vinte.
E o jogo continuou, silenciosamente.
E, no meio do surdo ansiar dos que jogavam, um terceiro número vermelho dobrou a parada de D. Filipe, que conservava a sua imobilidade de pedra.
Tão forte, porém, era o arfar do seu peito, que todo o corpo lhe acompanhava as pulsações do coração.
Vermelho!
E oitenta luíses despejaram-se sobre os oitenta luíses do jogador imóvel.
Vermelho!
E o ouro começou a avultar defronte dele.
Vermelho ainda!
E as moedas iam formando já um cômoro de ouro defronte daquela figura estática, da qual só se viam distintamente as duas mãos, muito brancas, ligeiramente veiadas de azul puro.
Ainda vermelho!
E a figura imperturbável parecia agora de todo petrificada. E as duas mãos brancas pareciam fitar escarninhamente os outros jogadores, rindo por entre os dedos fixos.
A imobilidade e a fortuna do singular parceiro começavam a impressionar a todos.
Vermelho!
E já os olhares dos homens e das mulheres não se podiam despregar daquele misterioso companheiro de vício, cuja fisionomia nenhum deles conhecia ainda, absorvido como até então estivera cada qual no próprio jogo.
Vermelho! Vermelho!
E o monte de ouro ia crescendo, crescendo, defronte daquelas duas mãos que pareciam cada vez mais brancas, mais escarninhas, e mais ferradas ao rosto do jogador imóvel.
Vermelho! Vermelho! Vermelho!
E as moedas alargavam a zona inteira, escorrendo por entre os cotovelos do jogador de pedra, e caiam-lhe pelas pernas inalteráveis, e rolavam tinindo pelo chão.
Vermelho! E os jogadores esqueciam-se do próprio jogo para só atentar no jogo do singular conviva; à espera todos que aquelas duas mãos de mármore se afastassem; que aquela escarninha máscara caísse, revelando alguém.
E a cada golpe uma nova riqueza vinha dobrar a riqueza acumulada defronte do sinistro mascarado de mármore. Em vão, ao lado dele, uma formosa criatura, com ares de rainha e olhos de criada, aquecia-lhe havia meia hora a perna esquerda com a sua perna direita; em vão, por detrás da sua cadeira, formara-se um palpitante grupo de mulheres, que riam forte e lhe discutiam a fortuna, apostando, a cada novo golpe da sorte, se o original jogador sustentaria ou não o lance por inteiro.
E já quando o vermelho era ainda uma vez anunciado pelo trêmulo banqueiro, partia de toda a sala uma explosiva exclamação de pasmo.
Era preciso tocar a cada instante o tímpano, pedindo atenção e silêncio.
Mas os comentários reproduziam-se, fervendo em torno da estátua feliz. Uns protestavam contra a loucura daquela pertinácia, pedindo para seu castigo um número negro; outros se entusiasmavam com ela e soltavam bravos de aplauso; outros ainda calculavam o ouro acumulado, somando os lances.
E o banqueiro, cada vez mais pálido, tomava com a mão trêmula a bola fatídica, e, a tremer, fazia-a girar na gamela dos números, e, a tremer, anunciava ofegante o número vencedor que era sempre vermelho.
Cada número vinha acompanhado de um coro de pragas e gargalhadas.
Até que, num desalento do capitão vencido, o banqueiro, dando ainda o último vermelho, anunciou com uma voz de náufrago sem esperanças:
- Banca... à glória!
Mas, nem assim, o imperturbável jogador misterioso fizera o menor gesto; ao passo que em redor dele se acotovelavam os viciosos de ambos os sexos e de todas as nações, formando uma rumorosa e irrequieta muralha, ansiosa de curiosidade.
Chamaram-no de todos os lados, em todas as línguas e em todos os tons.
Ele se não moveu.
Tocaram-lhe no ombro; tocaram-lhe na cabeça.
Nada!
Sacudiram-lhe o corpo.
A estátua continuou imóvel.
Então, dois homens, tomando cada um uma das mãos do fidalgo, arrancaram-lhas do rosto, enquanto um terceiro lhe levantava a cabeça.
E um só grito de horror partiu dentre toda aquela gente.
Quem à glória levara a banca e ali estava imóvel a jogar com eles durante a noite, provocado pelas mulheres e invejado pelos homens, era um cadáver frio, de olhos escancarados a boca semi-aberta, e com duas lágrimas compridas escorrendo pela algidez das faces contraídas.
Largaram-no espavoridos; e o morto tombou com a cabeça sobre a mesa, colando o rosto e as mãos de mármore sobre o seu ouro, como se o quisesse defender da cobiça dos outros jogadores sobreviventes, que já discutiam aos gritos a legitimidade daquela posse.
Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. 1895.
Aluísio de Azevedo. Demônios. 1895.
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