sábado, 5 de fevereiro de 2022

A. A. de Assis (“Amnestia”)

Vou falar de novo do professor Polyclínio. Ele era desses de não dizer as coisas sem minuciosa explicação. Cada palavra no seu devido lugar e com o significado exato. Um vizinho dele chegou meio avexado, falando dos entreveros que mantinha com a mulher: “Ela é dura na queda, seu professor. Tá certo que fiz minhas travessuras na vida, mas isso foi já faz muito tempo. Volta e meia ela me pega no pé e sai com os desaforos. Tem hora que chega a me dar gana de desmaridar. Só à custa de muita reza vale-me o santo de me reassossegar”.

O bom mestre pediu-lhe que mandasse Dona Zina falar com ele. Daria uns conselhos de velho experimentado, habituado a lidar com as mais complicadas filosofias, psicologias, etceterologias. Ela decerto haveria de acabar com aquelas rabugências.

A mulher foi, sentou-se, aceitou um chazinho. Provocada pelo paternal Polyclínio, narrou as artes do marido, reconhecendo, entretanto, que “o safado nos últimos tempos andava mais caseiro e quieto”.

– Pois olhe, querida vizinha e amiga, eu lhe garanto que o Lico se emendou de vez e de verdade. Então acho que está na hora de dar um fim nessas brigas tolas. Proponho que a senhora, generosa como é, além de perdoá-lo, lhe ofereça uma anistia.

– Merecer ele não merece, mas já perdoei sim senhor.

– Perdão é pouco. Tem que ser anistia mesmo. Perdão é coisa que muita gente diz que dá, mas não dá. Fica com a mágoa encalhada no coração. Basta um mínimo furrubundum pra vir tudo de novo à goela.

– Se explique mais melhor, faz favor.

– Explico sim. “Anistia”, no grego, é “amnestia” (de “mnes”, que significa “memória”). Juntando o prefixo “a”, que indica “negação”, temos “a-mnestia”, isto é, algo não lembrado, varrido da memória. Anistia é o mesmo que esquecimento total.

Dona Zina ficou mais perdida do que antes. Vá lá saber que trem era esse que o velho sábio estava tentando lhe enfiar no ouvido...

– Deixemos pra lá os gregos, disse ele. Quero só que a senhora esqueça todas as descabeçadas que o seu marido andou aprontando no bem antes do hoje. Quem sabe a senhora, mesmo sendo uma abençoada pessoa, também tenha alguma parte na culpa. Mas agora que os dois estão mais maduros tratem de apagar as más lembranças e comecem de novo a vida.

– O senhor professor acha que dá?

– Acho sim. “Amnestia”... anistia... esquecimento completo... Perdão é uma palavra bonita, mas anistia tem bem mais força: enxota da memória as causas da mágoa. Se alguém fez algo errado, esqueça de vez. E bola pra frente, cabeça erguida, coração limpinho. Entende?

– Entender não entendo muito não, mas entendo sim.

– Vá em paz. E dê um abração no meu amigo Lico.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-1-2022)

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Texto enviado pelo autor.

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