Era uma vez uma rainha que deu à luz um filho tão feio e tão deformado que, durante muito tempo, se duvidou que tivesse forma humana. Uma fada que estava presente quando ele nasceu assegurou que, apesar do seu aspecto, seria amável e muito inteligente. Acrescentou ainda que, graças ao dom que ela lhe concedera, poderia dar à pessoa que mais amasse uma inteligência igual à sua. Estas palavras consolaram um pouco a pobre mãe que estava muito triste por ter posto no mundo uma criança tão feia. Com efeito, mal começou a falar, o menino disse logo coisas engraçadas e inteligentes, causando grande admiração entre quem o escutava.
Já me esquecia de dizer que o menino nasceu com um tufo de cabelo na cabeça, o que fez com que lhe chamassem Riquete do Topete, uma vez que Riquete era o seu nome de família.
Alguns anos mais tarde, a rainha de um reino vizinho deu à luz duas meninas. A primeira era mais bela do que o dia e a rainha ficou tão feliz que temeu que tanta alegria lhe fizesse mal. Estava presente a mesma fada que assistira ao nascimento do pequeno Riquete do Topete e, para moderar a alegria da mãe, disse-lhe que a princesa teria pouca inteligência e que seria tão estúpida quanto era bonita.
A rainha ficou muito triste mas, momentos depois, teve um desgosto ainda maior porque a segunda filha que deu à luz era muito feia.
- Não se aflija, Majestade, – disse a fada – a vossa filha será tão inteligente que a sua fealdade quase não será notada.
- Deus o queira, – respondeu a rainha – mas não haverá meio de conceder um pouco de inteligência à mais velha que é tão bela?
- Não posso fazer no que toca à inteligência, – disse a fada – mas posso fazer tudo em relação à beleza. E como não há nada que eu não faça para vos satisfazer, concedo-lhe o dom de poder tornar bonita a pessoa que ela quiser.
À medida que as duas princesas foram crescendo, cresceram também os seus dotes, e não se falava senão da beleza da mais velha e da inteligência da mais nova. Também é verdade que os seus defeitos aumentaram muito com a idade.
A mais nova estava cada vez mais feia e a estupidez da mais velha crescia de dia para dia: ou não respondia ao que se lhe perguntava ou então dizia uma bobagem qualquer. Além disso, era tão desajeitada que não conseguia pousar quatro xícaras na borda da chaminé sem partir uma, nem conseguia beber um copo de água sem entornar metade por cima do vestido.
Ainda que a beleza seja uma grande vantagem numa jovem, o certo é que a mais nova suplantava quase sempre a mais velha quanto a companhias durante os serões. A princípio, as pessoas rodeavam a mais velha para a verem e admirarem mas, pouco depois, iam para junto da mais inteligente escutar as mil e uma coisas espirituosas que ela dizia. Em menos de um quarto de hora a mais velha ficava sozinha, enquanto que mais nova tinha toda a gente em seu redor.
A mais velha, apesar de ser muito estúpida, apercebia-se do que se passava e teria dado de bom grado toda a sua beleza em troca de metade da inteligência da irmã. A rainha, ainda que ponderada, não conseguia deixar de a repreender pela sua estupidez, o que entristecia ainda mais esta pobre princesa.
Um dia, foi para o bosque para poder chorar à vontade. Nisto, aproximou-se dela um homenzinho muito feio e desajeitado, mas ricamente vestido. Era o jovem príncipe Riquete do Topete que tinha se apaixonado perdidamente por ela, depois de ver os seus retratos que circulavam por todo o mundo. Abandonara o reino do seu pai para ter o prazer de a ver e de falar com ela. Encantado por a ter encontrado sozinha, dirigiu-lhe a palavra com muita delicadeza. Notando a sua melancolia, disse-lhe:
- Senhora, não compreendo como é que uma pessoa tão bela como vós pode estar tão triste. Asseguro-vos que nunca vi beleza semelhante à vossa.
- Isso diz o senhor. – respondeu a princesa.
- A beleza constitui um tal privilégio que supera tudo o resto. Quando alguém a possui, não acredito que exista alguma coisa que a possa afligir muito. – acrescentou Riquete do Topete.
- Preferia ser feia como vós e ser inteligente, em vez de ser tão bela e estúpida como sou. – confessou a princesa.
- Se é só isso que vos aborrece, posso facilmente por fim à vossa dor.
- E como o farias? – Perguntou a princesa.
- Tenho o dom de dar inteligência à pessoa que mais amar. E, como vos amo, dar-vos-ei o que pretendes se aceitares casar comigo.
A princesa ficou sem palavras, tal foi o seu espanto.
- Vejo que este pedido vos desagrada, o que não me admira nada – continuou Riquete do Topete. – Contudo, dou-vos um ano para decidires.
A princesa era tão pouco inteligente e ao mesmo tempo desejava tanto sê-lo que pensou que um ano seria demasiado tempo para esperar. Por isso, aceitou logo a proposta que lhe fora feita.
Assim que ela prometeu que casaria com Riquete do Topete dentro de um ano naquele mesmo lugar, sentiu-se uma pessoa diferente, sem dificuldade em dizer tudo o que lhe apetecia, de uma maneira elegante, clara e natural. Iniciou logo um diálogo de tal forma espirituoso, que Riquete pensou ter-lhe dado mais inteligência do que a que ele próprio possuía.
Quando regressou ao palácio, a corte nem sabia o que pensar da sua extraordinária mudança. Em situações onde outrora ouviam uma quantidade de bobagens, ouviam agora pensamentos claros e muito espirituosos. A única pessoa que não ficou totalmente satisfeita com esta mudança foi a irmã mais nova, porque havia perdido a única vantagem que tinha em relação a ela. O rei passou a ouvir as suas opiniões e, por vezes, pedia-lhe conselhos. Os rumores sobre esta transformação espalharam-se pelo reino e os jovens príncipes dos reinos vizinhos esforçavam-se por conquistar a sua afeição. Muitos pediram-na em casamento, mas a princesa não os achou suficientemente inteligentes e recusou todos os pedidos.
Por fim, houve um príncipe tão poderoso, tão rico, tão inteligente e tão belo que a pediu em casamento, que a ela não pode deixar de pensar no seu pedido. O pai notou o seu interesse pelo príncipe e disse-lhe que podia ser ela a escolher o noivo que entendesse. Só teria que dizer de quem gostava.
Para poder decidir com calma, foi passear, por acaso, para o bosque onde tinha conhecido Riquete do Topete. Foi então que ouviu vozes em surdina, mesmo por baixo dos seus pés, como se aí estivessem muitas pessoas atarefadas, andando de um lado para o outro.
Prestou mais atenção e ouviu alguém pedir:
- Traz-me essa panela.
E logo a seguir:
- Dá-me aquele pote.
E outra pessoa:
- Põe lenha na fogueira!
Nesse preciso momento o chão abriu-se e ela viu lá embaixo um enorme espaço semelhante a uma cozinha cheia de cozinheiros, de criados e de todo o gênero de ingredientes que são necessários para se fazer um festim magnífico. Um grupo de vinte ou trinta cozinheiros dirigiu-se para uma alameda do bosque. Puseram-se à volta de uma mesa muito comprida e começaram a trabalhar ao ritmo de uma bela canção.
A princesa, espantada com o que via, perguntou-lhes para quem trabalhavam.
- O nosso amo é o príncipe Riquete do Topete que se casa amanhã. – respondeu-lhe o mais vistoso do grupo.
Foi então que a princesa se lembrou que tinha prometido casar-se com Riquete do Topete naquele mesmo dia. Quase desmaiou! Porém, havia uma razão para o seu esquecimento: naquela altura, era apenas uma tonta. Assim que recebeu do príncipe uma nova inteligência, esqueceu todas as tolices que dizia.
Ainda não dera trinta passos quando Riquete do Topete surgiu diante de si, em trajes magníficos, conforme convém a um príncipe que se vai casar.
- Aqui estou, Senhora, pronto a cumprir a minha palavra. Não duvido que também vieste cumprir a vossa e, assim, tornar-me o homem mais feliz do mundo.
- Confesso, com toda a franqueza, que ainda não me decidi e penso que nunca poderei tomar a decisão que deseja. – respondeu a princesa.
- Muito me admiro, Senhora! – Respondeu Riquete do Topete.
- Acredito que, se estivesse a falar com um homem grosseiro e bruto, estaria agora bastante embaraçada. «Uma princesa deve cumprir a sua palavra - dir-me-ia ele.» Mas como estou a falar com o homem mais inteligente do mundo, estou certa que me compreenderá. Sabe que, quando era tonta, nem ao menos pude decidir se queria casar consigo ou não. Se pretendia casar comigo não me devia ter livrado da minha estupidez. Agora vejo as coisas com mais clareza!
- Alteza, quereis que me contenha no momento em que a minha felicidade está em jogo? Será razoável que as pessoas inteligentes se encontrem em desvantagem em relação às que o não são? Mas vejamos os fatos, se o permitis. Além da minha fealdade há mais alguma coisa que não vos agrade? Desagrada-vos a minha origem, as minhas capacidades, o meu caráter ou as minhas maneiras?
- Não, pelo contrário, todas essas características me agradam. - respondeu a Princesa, sem hesitar.
- Então, serei feliz, – continuou Riquete do Topete – pois está na vossa mão tornar-me o mais atraente dos homens. Basta que me ames o suficiente. A mesma fada que me concedeu o dom de tornar inteligente a pessoa de quem mais gostasse, também vos concedeu, a vós, o dom de tornar bonito aquele a quem ames.
- Se o que dizes é verdade, desejo do fundo do coração que vos torneis o príncipe mais bonito do mundo. – declarou a princesa.
Ainda a princesa não tinha acabado de falar e já Riquete do Topete parecia, aos seus olhos, o homem mais bonito e fascinante que alguma vez vira.
Há quem diga que esta mudança do príncipe não aconteceu graças ao feitiço da Fada, mas que só por amor se pode obter uma metamorfose assim. Dizem que a Princesa, depois de pensar nas qualidades do seu namorado, deixou de ver o seu corpo deformado.
A Princesa prometeu que casaria com ele de imediato, desde que o seu pai concordasse. O Rei, quando soube que a filha sentia grande admiração por Riquete do Topete, príncipe muito conhecido pela sua grande sabedoria, aceitou-o com prazer como genro.
No dia seguinte, celebrou-se a boda, tal como Riquete tinha previsto e de acordo com as ordens que dera há já muito tempo.
Nenhuma beleza e nenhum talento tem poder sobre um encanto indefinido, só pelo amor percebido.
Fonte:
Charles Perrault. Contos de tempos passados. Publicado originalmente em 1697.
Charles Perrault. Contos de tempos passados. Publicado originalmente em 1697.
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