quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Rubem Penz (A carta na garrafa)

Socorro, salve-me! Estou num lugar inóspito cercado de circunstâncias por todos os lados. Até agora, tenho me alimentado de convicções que tinha ainda em semente. Porém, depois de implantadas, em vez de crescerem, algumas minguaram, minguaram, minguaram e, por fim, morreram. As que me restam estão custando muito a florescer para, quem sabe, um novo semear. E, em se tratando de convicções, quebrar o galho não adianta, pois elas não pegam de muda.

Eu sei que poderia enfrentar as circunstâncias e me libertar desse inferno sem o auxílio de mais ninguém. Quem observa o horizonte de modo bastante atento, acaba descobrindo correntes de circunstâncias favoráveis até mesmo no infindável mar de lama. Acontece que desanimo cada vez que vejo as pessoas embarcando em tábuas de salvação meio furadas, que afundam em promessas ou devolvem os cidadãos à praia com novas ondas de pessimismo.

Ainda em se tratando de viagens, talvez me falte coragem para encarar a travessia por desconfiar de que, deixando essa minha ilha, seja para onde for, novas circunstâncias estarão a me oprimir. São tantos anos convivendo com as más, que boas circunstâncias soam como ficção científica.  

Se bem que, noite passada, sonhei com infraestrutura de saúde e educação pública, modais de transporte variados, boas matrizes energéticas e investimentos seguros... Acordei de súbito com a taxa de juros disparando em meu peito. Como não sei se estarei vivo quando esta carta chegar a ser lida, peço a ti, que sacou a rolha, rumar para a minha ilha de qualquer maneira. Por favor, não se furte em me prestar socorro. Se alguma garrafa atirada por um dos meus ancestrais tivesse alcançado a sensatez, a maturidade ou a decência, quem sabe eu agora não estivesse nesta situação lastimável. Isso, claro, na hipótese (positiva) de estares em algum desses estágios de civilidade. Se terríveis circunstâncias levaram minha garrafa para um destino pior, que ela sirva, ao menos, de consolo a ti, caro leitor: sim, existem no mundo outros homens vivendo de precárias convicções.

PS.: Esqueci de mandar o endereço ou mapa, não é? Mas é fácil chegar aqui: siga o caminho do capital especulativo ou do turismo sexual. De outra forma, faça o caminho inverso da evasão de recursos naturais (essa trilha tem mais de 500 anos). Só não caia na tentação de usar a rota da esperança eterna em um futuro melhor - esse caminho parece não levar a lugar algum.

Fonte:
Rubem Penz. Enquanto tempo: crônicas. Porto Alegre: BesouroBox, 2013.

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