terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Estante de Livros (“Noites do Sertão”, de Guimarães Rosa)


Compõe-se de duas novelas ou “poemas”, como as chama Guimarães Rosa. O primeiro poema é “Dão-Lalalão (o devente)”, quase um conto, que surpreende pela intensidade do suspense. Terminado o primeiro poema, estamos com o espírito azeitado para a leitura de “Buriti”, certamente uma obra-prima da literatura mundial.

As duas novelas que formam estas Noites do sertão têm como traço comum a sensualidade como força arrebatadora que se sobrepõe a convenções e preconceitos, e pode levar homens e mulheres tanto à plenitude do prazer quanto ao encontro de si mesmos. A primeira, “Dão-Lalalão”, é a estória de Soropita, vaqueiro valentão, responsável por várias mortes, que se apaixona totalmente pela faceirice sensual de Doralda, mulher que é “o estado de um perfume. Respirar que forma uma alegria”. Surupita a tira de um bordel de Montes Claros para fazer dela sua esposa, mas, apesar da felicidade que experimenta ao seu lado, se ressente ainda de que algum de seus companheiros a reconheçam.


“Amigo é: poucos e com fé e escolha, um parente que se encontrava. Um bom amigo vale mais que uma boa carabina.”

“Um homem não é um homem se escapa de não pensar primeiro na mulher.”


A segunda, “Buriti”, narra o envolvimento de quatro pessoas que vivem numa fazenda, num clima de extrema sensualidade que os vai envolvendo pouco a pouco e provoca as mais inesperadas aproximações”.

No cenário da fazenda do Buriti Bom, onde acontece a maior parte da história:


“Triste é a água e alegre é. Como o rio continua, Mas o Buriti Bom era um belo poço parado. Ali nada podia acontecer, a não ser a lenda.”

Três personagens femininas muito marcantes vivem nessa fazenda, começando por Lalinha:

“Dona Lalinha, tem mulheres de lindeza assim, a gente sente a precisão de tomar um gole de bebida, antes de olhar outra vez.”

A figura central é Lalinha, mulher abandonada por Irvino e trazida pelo sogro, Liodoro, para a fazenda da família, chamada Buriti Bom. Na espera por alguém que não vai voltar, nesse meio estranho em que ela fica como forma de reparação do dano causado pelo marido, vivendo uma estranheza espacial e afetiva.

O contraponto de Lalinha é a feia e doentia Maria Behu. Behu personifica a noite em oposição à irmã solar, Glória:


“Ajoelhada no meio do quarto, Maria Behu rezava. O terço serpenteava preto entre suas mãos, e, à sétima ave-maria de cada mistério, ela beijava o chão, por orgulho de humildade.”

Ponto de conexão entre os dois polos é Glorinha:

“Maria da Glória é inocente, de uma inocência forte, herdada, que a vida ainda irá desmanchar e depois refazer.”

Glorinha encanta e se encanta por Miguel, que é descrito de forma igualmente vívida:

“Trabalhava atento, com afinco. Somente assim podia enfeixar suas forças no movimento pequeno do mundo. Como se estivesse comprando, aos poucos, o direito a uma definitiva alegria, por vir, e que ele carecia de não saber qual iria ser.”

Outros personagens marcantes como Iô Liodório, Nhô Gualberto, Dona-Dona. Outro personagem significativo para pensar a relevância da natureza é Chefe Zequiel. Insone, sofrendo dores de cabeça, é um personagem que se caracteriza pela vigília, sempre atento aos rumores do sertão. Zequiel conhece cada espécie que habita o sertão, com seus rumores típicos:

“O pior, é que todo dia tem sua noite, todo dia. (...) A noite é cheia de imundícies.”

A figura da palmeira, em especial o buriti-grande, árvore de beleza excepcional próxima à fazenda Buriti Bom, é um exemplo do valor que a paisagem acrescenta à obra.

A grandeza da Literatura de Guimarães Rosa é expressar em linguagem poderosa e bela algo que reverbera como cristalina verdade no âmago de nosso ser. Comparo sua prosa à poesia de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, que sabiam falar com muita beleza das verdades da alma. Como por exemplo:


Deus podia ter botado os cegos no mundo, para vigiarem os que enxergavam. Esses cegos, como os brabos arruaceiros: os valentões, que eram mandados permitido como castigo de todos, para destruir o sensível do bom sossego.”

Há ainda duas citações luminosas, em referência à tão comentada invenção de neologismos praticada por Guimarães Rosa. Note-se que as palavras inventadas (“tãomente” e “vãidade”) não estão ali por capricho, mas por altíssima exigência estética:

“O amor exigia mulheres e homens ávidos tãomente da essência do presente, donos de um perfeição espessa, o espírito que compreendesse o corpo.”

“Numa criatura humana, quase sempre há tão pouca coisa. Tanto se desperdiçam, incompletos, bulhentos, na vãidade de viver.”


Em “Buriti”, a paisagem é dinâmica, o ambiente nunca é apenas um cenário, pelo contrário, a antropomorfização nas descrições da natureza acaba abrindo novas camadas de significação na obra e contribui para o entendimento de características mais complexas dos personagens e do próprio imaginário que se desenvolve com a paisagem. Ao mesmo tempo em que permite discorrer sobre a região e a problemática sociocultural, o texto de Guimarães Rosa oferece um panorama que transcende a região como limite. O espaço do sertão na obra do escritor mineiro segue o inverso de uma delimitação regional, uma vez que é na vastidão que se constrói sua metáfora do sertão: “lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos”.

Guimarães Rosa, foi um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos. Foi também médico e diplomata. Os contos e romance escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falarem  de maneira popular e regional. É um clássico da literatura nacional, que deve ser lido e agraciado.

‘Noites do Sertão’ foi adaptado para o cinema em 1983, baseado na história ‘Buriti’ e teve em seu elenco Tony Ramos e Débora Bloch.


Fontes:
Alessandra Paula Rech. O sertão como representação dos personagens em “Buriti”, de Guimarães Rosa. Cad. Letras UFF, Niterói, v. 29, n. 58, p. 95-106, n. 1, 2019
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