sábado, 19 de fevereiro de 2022

Mário Quintana em Prosa e Verso – 19 –

CANÇÃO DE INVERNO


O vento assovia de frio
nas ruas da minha cidade
enquanto a rosa-dos-ventos
eternamente despetala-se...

Invoco um tom quente e vivo
- lacre num envelope? -
e a névoa, então, de um outro século
no seu frio manto envolve-me

Sinto-me naquela antiga Londres
onde eu queria ter andado
nos tempos de Sherlock - o Lógico
e de Oscar - pobre Mágico...

Me lembro desse outro Mario
entre as ruínas de Cartago.
mas me indago - Aonde irão
morar os nossos fantasmas?

E o vento, que anda perdido
Nas ruas novas da Cidade,
ainda procura, em vão,
ler os antigos cartazes...
= = = = = = = = = = = = =

O ESPELHO

E como eu passasse por diante do
espelho
não vi meu quarto com as suas
estantes
nem este meu rosto
onde escorre o tempo.

Vi primeiro uns retratos na parede:
janelas onde olham avós hirsutos
e as vovozinhas de saia-balão
como para-quedistas às avessas que
subissem do fundo do tempo.

O relógio marcava a hora
mas não dizia o dia. O Tempo,
desconcertado,
estava parado.

Sim, estava parado
em cima do telhado...
como um catavento que perdeu as asas!
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O AUTO-RETRATO

No retrato que me faço
- traço a traço -
as vezes me pinto nuvem.
às vezes me pinto árvore…

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão.

E desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
= = = = = = = = = = = = =

MUNDOS

Um elevador lento e de ferragens
Belle Époque
me leva ao antepenúltimo andar do
Céu,
cheio de espelhos baços e de
poltronas como o hall
de qualquer um antigo Grande Hotel,

mas deserto, deliciosamente deserto
de jornais falados e outros fantasmas
da TV,
pois só se vê, ali, o que ali se vê
e só se escuta mesmo o que está bem
perto:

é um mundo nosso, de tocar com os
dedos,
não este - onde a gente nunca está, ao
certo,
no lugar em que está o próprio corpo

mas noutra parte, sempre do lado de
lá!
não, não este mundo - onde um perfil
é paralelo ao outro
e onde nenhum olhar jamais
encontrará...
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PEQUENO POEMA DIDÁTICO


O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconsequente conversa.

Todos os poemas são um mesmo
poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas!

Fonte:
Mário Quintana. Apontamentos de história sobrenatural. Porto Alegre: Globo & Instituto Estadual do Livro, 1976.

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