sábado, 5 de fevereiro de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Aos milagres de certas graças)

AS DUAS AMIGAS, Cimara e Cineide, caminham sem pressa alguma para o ponto de ônibus. São quase onze horas. O sol está escaldante. Apesar disso, as beldades proseiam e riem animadamente, enquanto cruzam as ruas na tentativa de galgarem o ponto da condução, na praça da igreja matriz, aquela hora, apinhada de gente.

Cimara: — Mudando de pau pra cavaco, acho que não te falei. A minha mãe perdeu o celular e não sabe onde. Na volta, você me ajuda a procurar?

Cineide: — Fácil, amiga. Nem precisa se dar ao luxo. Ligue para ele...

Cimara: — Você acredita que não sei o número da minha velha?

Cineide: — Que número que você não sabe?

Cimara: — Do celular da minha mãe, ora bolas. De quem mais? Acorda, colega...

Cineide: — Eu que não sou nada da sua mãe tenho o número dela. Deixa ver aqui na agenda do meu aparelho...

Cimara: — Achou?

Cineide: — Anota ai no seu: nove, nove, nove, cinco, oito zero, zero, dois patinhos na lagoa, bolinha ó. Gravou?

Cimara: — Sim, amiga: nove, nove, nove, cinco, nove... oito zero, dois patinhos na lagoa, bolinha ó. Confere?

Cineide: — Liga logo e deixa de onda...

Cimara: — Estou fazendo isso, amiga. Droga! Ninguém atende. A bateria deve ter descarregado...

Cineide: — Vamos fazer o seguinte, Cimara?

Cimara: — Diga, amiga...

Cineide: — Que tal deixarmos os nossos salões de beleza para amanhã? Hoje, segunda-feira, deve estar assim de gente. Olhe como andam os ônibus. Aproveitando que dona Glória sai cedo para o trabalho, sugiro voltarmos agora à casa dela, já que é perto da sua e da minha e revirarmos tudo de pernas para o ar. Assim que toparmos com ele, se estiver por lá, logicamente, botamos para carregar e aí a gente liga em seguida dos nossos aparelhos até descobrirmos, de uma vez por todas, onde ele se encontra...

Cimara: — Bem pensado, Cineide. Por que não atinei com isso antes?

Cineide: — Por que você não é ninguém se eu não estiver por perto para lembrar certas coisinhas simples. Resumindo, Cimara: eu sou o pensamento vivo que aflora e você a cabeça objetiva que coloca o que mentalizo em movimento.

Cimara: — Você tem toda razão, minha linda. Sem você eu não seria nada.

Cineide: — E eu sem você me pilho como um zero à esquerda, apesar de estarmos ambas com quase trinta anos nas costas. Na volta da sua mãe, passamos em minha casa e almoçamos. Gostou da ideia?

Chegam no quintal de dona Glória. Um outro problema surge em obstáculo: Cimara não vislumbra como ganhar o interior da enorme moradia. Lembra, entrementes, que a sua genitora deixa as chaves dependuradas num local apropriado onde, aliás, repousam todas as demais pecinhas pertencentes aos outros cômodos. Sua mãe carrega, na bolsa, somente a tetra de três voltas de acesso à sala.

Cimara: — Reze, Cineide, para que a mãe não tenha feito como eu faço no meu quadrado. Por medo encadeio, com escoras, todas as janelas. A da despensa ela sempre deixa encostada...

Volteiam em torno da construção. De posse de um cabo de vassoura forçam o tal envidraçado do depósito. Realmente, não havia sido imobilizado.

Cineide: — É meio alto. Consegue subir e pular?

Cimara: — Com a sua ajuda... me disponho a qualquer travessura. Como estou de vestido, e não temos suporte de apoio. Por favor, quando me segurar, não espie a minha calcinha...

Vai daqui, tenta dali, agarra acolá, a jovem alcança seu intento. Sem mais delongas, passa a mão nas chaves da cozinha e, de reforço, a que descamba na varanda. Engrena as veredas de regresso.

Uma trabalheira danada para “despular” de onde começou a aventura. Colocar a brecha invadida na posição normal e abandonar o conforto do peitoril de mármore no qual se agarrara, atrelada ao afoito acelerado da descida. Ao se soltar, um movimento abrupto faz com que ambas se desequilibrem e beijem o chão rolando cada uma para um canto. Rostos sujos de terra, mãos e roupas igualmente emporcalhadas, Cimara exibe num sorriso contagioso o resultado edificante do que se propusera em sua missão:

— Pronto, amiga. Agora podemos escolher. Você prefere vir comigo pelo conforto da sala ou começamos a escalada usando os descaminhos tortuosos dos fundos?

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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