Cleomir era um camarada baixinho e magricela, antigo morador do morro do Juca Branco, em Niterói, Era a figura do malandro: bom de lábia, cheio de ginga e com as gírias na ponta da língua. Cleomir trabalhou durante alguns anos na empresa Ingá, como cobrador. No início da carreira, não teve jeito: o malandro magricela teve que trabalhar no sereno (horário da madrugada) por algum tempo. Das linhas de sereno da Ingá, a pior naquela época (e ainda hoje?) era com certeza a linha 26 (Caramujo x Centro). O bairro do Caramujo quase sempre foi um bairro chapa-quente.
Durante alguns anos, lá ocorreu um tradicional baile funk. O baile era tão requisitado e conhecido que vinham galeras de outras comunidades (controladas, claro, pela mesma facção criminosa) para curtir o baile. Se você é rodoviário, deve saber como são as festas: as pessoas vão chegando aos poucos, espalhadas. Mas, na hora de ir embora, parecem sair todas ao mesmo tempo, e lotam o primeiro ônibus que estiver na reta.
E assim era o tal baile, até porque não havia mesmo outro ônibus senão aquele único que fazia o sereno.
Num belo (pelo menos até ali) final de madrugada, já prestes a dar sua última viagem, por volta das 4h20 da manhã, eis que o motorista chega à pracinha do Caramujo, onde a carona rolava solta, até mesmo durante o dia. Final de baile. O motorista parou o veículo e, macaco velho e vacinado, diante daquela multidão, abriu as duas portas. Todos ali, claro, entraram pela porta dianteira, sem pagar. O Cleomir estava lá atrás, na roleta, tranquilamente observando a movimentação e tentando perceber algum conhecido naquela multidão, ou ao menos alguma gatinha. Mas que nada: nem havia mulher alguma, nem algum conhecido, e olha que o Cleomir conhecia era malandro!
Parte então o velho carroção, indo em direção ao centro de Niterói, onde faria ponto final no Terminal Rodoviário João Goulart. Mas antes de sair do Caramujo, uma discussão se estabeleceu entre alguns passageiros. Enquanto o ônibus avançava, o tom rapidamente foi subindo; algum desentendimento entre uma galera da Vila Ipiranga com uma turma vinda de São Gonçalo era o motivo do falatório, Ao sair do bairro para pegar a estrada, parece que um sinal tocou em algumas daquelas cabeças alcoolizadas, e a pancadaria rufou, como se diz. O que era uma troca de sopapos entre dois elementos rapidamente foi crescendo e contaminando todo o ônibus, para susto e desespero de Cleomir, que era malandro, mas sempre correu de briga. Rapidamente a pancadaria chegou à parte de trás do busão, e Cleomir viu-se encurralado.
Tentou gritar para o parceiro:
- Pare esse ônibus aí, Alfredão!
Mas lá na frente alguns elementos já haviam dito ao motorista, Alfredo, que se parasse ele também iria apanhar, e deveria acelerar para chegar logo na Vila Ipiranga.
Acontece que o porradal estava tão intenso que até o Cleomir, coitado, acabou levando uma cipoada de raspão na cara. Não sabendo o que fazer e desesperado, o malandro pensou: "Em rosto que mamãe beijou ninguém mete a mão não!"
Em seguida pulou de seu trono, enfiou-se entre dois elementos que se esmurravam perto dele e abriu a janela. Era mesmo uma "janela de emergência": o malandro havia há muito tirado os parafusos que impediam que a janela se abrisse por completo, e assim o vidro abriu-se de par em par.
Mas haviam dois problemas: Um - o dinheiro. Este Cleomir resolveu pegando as notas que estavam na gaveta, e deixando para trás as muitas moedas e seus apetrechos, como o carimbo que se usava para carimbar os vales-transportes, que naquele tempo eram de papel.
O outro problema era mais indigesto: Seguindo as ordens da vagabundagem, o motorista Alfredão acelerara o ônibus à toda, e neste exato momento descia o morro da Caixa D'água por conta de Satã! Ao tomar mais uma pancada, o pequeno Cleomir não pensou duas vezes: tomou coragem (ou chegou ao limite o medo de apanhar?) e pulou pela janela do carroção encantado em alta velocidade, se esborrachando no chão!
Mas o malandro estava com o sangue tão quente que parece nem ter sentido o baque: levantou-se e saiu correndo, e correndo sem parar, da descida da Caixa D'água até a portão dos fundos da empresa (a Ingá), algumas centenas de metros distante.
Chegou na garagem esbaforido, ralado e sujo. Os poucos funcionários presentes o reconheceram, mas estranharam tanto seu estado quanto a ausência do ônibus.
- O que houve, Cleomir? Dormiu na rua? Cadê o ônibus?
Cleomir recuperava as forças para falar.
- Ah... ah... a porrada comeu... a porrada comeu dentro do ônibus... mais de trinta cabeças...
- Caramba! - disse um. - E o carro tá aí fora?
– ... Tá não... aff... tá não.
- Ué, e como você chegou aqui? Tá todo sujo e lanhado por quê? Te baixaram a porrada também???
- Não... é ruim hein?! Tô todo ralado mas porrada eu não levei não! Eu vi que não tinha jeito e pulei pela janela, que não sou otário!
- Mas mano, e o motorista, cara, e seu parceiro Alfredão? Deixou ele lá com os trinta?
- Amigo, sei lá de Alfredão, quero saber lá de parceiro! Quem tem parceiro é bandido! Pulei pra salvar a minha vida e nem olhei pra trás! Farinha pouca, meu pirão primeiro!!!
Durante alguns anos, lá ocorreu um tradicional baile funk. O baile era tão requisitado e conhecido que vinham galeras de outras comunidades (controladas, claro, pela mesma facção criminosa) para curtir o baile. Se você é rodoviário, deve saber como são as festas: as pessoas vão chegando aos poucos, espalhadas. Mas, na hora de ir embora, parecem sair todas ao mesmo tempo, e lotam o primeiro ônibus que estiver na reta.
E assim era o tal baile, até porque não havia mesmo outro ônibus senão aquele único que fazia o sereno.
Num belo (pelo menos até ali) final de madrugada, já prestes a dar sua última viagem, por volta das 4h20 da manhã, eis que o motorista chega à pracinha do Caramujo, onde a carona rolava solta, até mesmo durante o dia. Final de baile. O motorista parou o veículo e, macaco velho e vacinado, diante daquela multidão, abriu as duas portas. Todos ali, claro, entraram pela porta dianteira, sem pagar. O Cleomir estava lá atrás, na roleta, tranquilamente observando a movimentação e tentando perceber algum conhecido naquela multidão, ou ao menos alguma gatinha. Mas que nada: nem havia mulher alguma, nem algum conhecido, e olha que o Cleomir conhecia era malandro!
Parte então o velho carroção, indo em direção ao centro de Niterói, onde faria ponto final no Terminal Rodoviário João Goulart. Mas antes de sair do Caramujo, uma discussão se estabeleceu entre alguns passageiros. Enquanto o ônibus avançava, o tom rapidamente foi subindo; algum desentendimento entre uma galera da Vila Ipiranga com uma turma vinda de São Gonçalo era o motivo do falatório, Ao sair do bairro para pegar a estrada, parece que um sinal tocou em algumas daquelas cabeças alcoolizadas, e a pancadaria rufou, como se diz. O que era uma troca de sopapos entre dois elementos rapidamente foi crescendo e contaminando todo o ônibus, para susto e desespero de Cleomir, que era malandro, mas sempre correu de briga. Rapidamente a pancadaria chegou à parte de trás do busão, e Cleomir viu-se encurralado.
Tentou gritar para o parceiro:
- Pare esse ônibus aí, Alfredão!
Mas lá na frente alguns elementos já haviam dito ao motorista, Alfredo, que se parasse ele também iria apanhar, e deveria acelerar para chegar logo na Vila Ipiranga.
Acontece que o porradal estava tão intenso que até o Cleomir, coitado, acabou levando uma cipoada de raspão na cara. Não sabendo o que fazer e desesperado, o malandro pensou: "Em rosto que mamãe beijou ninguém mete a mão não!"
Em seguida pulou de seu trono, enfiou-se entre dois elementos que se esmurravam perto dele e abriu a janela. Era mesmo uma "janela de emergência": o malandro havia há muito tirado os parafusos que impediam que a janela se abrisse por completo, e assim o vidro abriu-se de par em par.
Mas haviam dois problemas: Um - o dinheiro. Este Cleomir resolveu pegando as notas que estavam na gaveta, e deixando para trás as muitas moedas e seus apetrechos, como o carimbo que se usava para carimbar os vales-transportes, que naquele tempo eram de papel.
O outro problema era mais indigesto: Seguindo as ordens da vagabundagem, o motorista Alfredão acelerara o ônibus à toda, e neste exato momento descia o morro da Caixa D'água por conta de Satã! Ao tomar mais uma pancada, o pequeno Cleomir não pensou duas vezes: tomou coragem (ou chegou ao limite o medo de apanhar?) e pulou pela janela do carroção encantado em alta velocidade, se esborrachando no chão!
Mas o malandro estava com o sangue tão quente que parece nem ter sentido o baque: levantou-se e saiu correndo, e correndo sem parar, da descida da Caixa D'água até a portão dos fundos da empresa (a Ingá), algumas centenas de metros distante.
Chegou na garagem esbaforido, ralado e sujo. Os poucos funcionários presentes o reconheceram, mas estranharam tanto seu estado quanto a ausência do ônibus.
- O que houve, Cleomir? Dormiu na rua? Cadê o ônibus?
Cleomir recuperava as forças para falar.
- Ah... ah... a porrada comeu... a porrada comeu dentro do ônibus... mais de trinta cabeças...
- Caramba! - disse um. - E o carro tá aí fora?
– ... Tá não... aff... tá não.
- Ué, e como você chegou aqui? Tá todo sujo e lanhado por quê? Te baixaram a porrada também???
- Não... é ruim hein?! Tô todo ralado mas porrada eu não levei não! Eu vi que não tinha jeito e pulei pela janela, que não sou otário!
- Mas mano, e o motorista, cara, e seu parceiro Alfredão? Deixou ele lá com os trinta?
- Amigo, sei lá de Alfredão, quero saber lá de parceiro! Quem tem parceiro é bandido! Pulei pra salvar a minha vida e nem olhei pra trás! Farinha pouca, meu pirão primeiro!!!
Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário