quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Vicência Jaguaribe (A Casa do Topo da Colina)

Sempre que ela saía, passava em frente à casa de Laura. E, como a casa ficava em uma curva, o motorista da limusine diminuía a velocidade. E a madame estranha, dona daquele carrão comprido que lembrava à menina um enorme cachorro linguiça, ficava bem visível.

Ela morava na casa grande e bonita, mas sinistra, construída em uma colina. Laurinha não sabia nada sobre aquela mulher. Fazia pouco tempo que sua família se mudara para aquele bairro, por isso não conhecia quase ninguém. Mas estava se coçando, com a curiosidade à flor da pele. Ah! Já sabia o que fazer: ia falar com Carlos, um colega de escola, seu amigo, com quem ela gostava de conversar. Se Carlos não soubesse alguma coisa, ninguém mais saberia. Ele conhecia todo mundo, afinal, nascera e se criara naquele bairro. Era a ele que ela ia especular — assim a vovó falava, lembrou-se — sobre a estranha madame.

Naquela sexta-feira, a aula terminou mais cedo e ela chamou o Carlos:

— Carlos, vamos sentar na praça que eu quero lhe perguntar umas coisas.

Sentaram-se no banco de madeira, velho, mas inteiro.

— Carlos, você conhece a dona da casa grande da colina?

— Conheço, mas nunca me aproximei dela. Os adultos dizem que é uma mulher muito perigosa. Mas falam baixinho, para ela não saber. Se souber que alguém faz comentários sobre a vida dela, ê, ê, o tempo fica feio.

— Mas o que é que ela faz de tão terrível?

— Vou lhe contar o que ouvi durante os dez anos da minha vida. Dizem que ela vem de uma família muito antiga. Tão antiga que está ameaçada de extinção, como os animais pré-históricos. Resta uma única herdeira: ela. Aquela mansão do alto da colina foi construída por seus avós há mais de um século, quando saíram da fria Europa do Norte e vieram para a América — vieram fazer a América, como se diz —, fugindo dos credores.

— Isso quer dizer que a família estava devendo muito dinheiro, e as pessoas a quem eles deviam começaram a cobrar?

— Isso mesmo, Laurinha.

— Então, ela é americana por causa de uma negociata da família que deu errado? — Perguntou a menina rindo.

— É. Mas que jeito engraçado você tem de falar! O que significa negociata?

— Ora, Carlos, eu conheço essa palavra porque meu pai é advogado e defende muita gente que entra em negociata. É um negócio suspeito, em que há trapaça, roubalheira.

— Ah! Entendi. Mas continuando: a família não chegou à nova terra desendinheirada, não. Os negócios na Europa foram à bancarrota, mas os donos continuaram endinheirados, como quase sempre acontece.

— Agora sou eu que pergunto: o que é bancarrota?

— Ah! Essa palavra eu ouvi de uma cliente do meu pai, que é contador. Achei o som dela tão engraçada, que fui ao dicionário: significa quebra, falência.

— Certo. Mas, voltando à madame. Como é mesmo o nome dela? E ela não tem marido, nem filho, nem irmão, ninguém? E quantos anos ela tem?

— Calma, vamos por parte. O nome dela é Malvina Cruela. Mas ninguém sabe exatamente a sua idade. Alguns dizem que tem pra lá de cem anos.

— Mas ela parece tão jovem!

— Aí é que está. Muitos acreditam que ela é uma bruxa e toma um elixir da longa vida que ela mesma criou. E, como já lhe disse antes, é a última representante da família. Depois dela, ninguém.

— Mas ela é rica? Em que ela trabalha?

— Parece que é muito rica, riquíssima. Mas não trabalha.

— E o que faz na vida?

— Ela faz uma coisa muito ruim, que é até proibido por lei: rouba e cria animais que tenham o couro apropriado para fazer roupa. Parece também que exporta madeira nobre.

— O que também é proibido.

— É. E ela já foi presa por causa disso.

— Carlos, você tem coragem de ir comigo espiar a casa dela?

O menino tomou o maior susto da vida dele. Nunca pensara em fazer uma coisa daquelas. Será que a Laurinha era corajosa assim?

— Não será perigoso?

— Que nada! A gente tem cuidado. Que tal amanhã, que é sábado?

— Tá fechado. Passo na sua casa às oito horas. Mas o que vamos dizer para sua mãe? Vamos mentir?

— Não, a gente diz que você vai me mostrar a colina, que eu ainda não conheço.

No dia seguinte, mais preciso do que os relógios de Cabo Canaveral, exatamente às oito horas, estava Carlos no portão da menina. Sem perda de tempo, dirigiram-se à colina, mas, em vez de passear ou apreciar a bela paisagem que se perdia por falta de quem a admirasse, foram fuçar a casa da Malvina Cruela. Ela ainda não havia acordado, mas os empregados já estavam na labuta. Os dois aproveitaram a saída de uma criada que deixara a porta aberta e, de repente, viram-se dentro daquela casa imensa, sem saber o que fazer nem para onde ir?

— E agora, Carlos, o que é que a gente faz, para onde a gente vai? — Tremia a voz da Laurinha.
— Eu não sei, não. Não foi você que quis vir! Pois agora diga o que fazer.

Ninguém falasse assim com aquela menina. Ouvir alguém duvidar de seus conhecimentos e de sua coragem era o mesmo que engolir um pouco do espinafre do marinheiro Popeye. Ela criava coragem e adquiria força. Nunca lhe dissessem que ela não sabia fazer alguma coisa.

— Vamos, vamos procurar os cachorros. — Era a fala da Laurinha, bastante aborrecida. — Se estamos aqui, vamos fazer alguma coisa útil.

— Mas como vamos encontrar esses cães?

— Abrindo os olhos e aguçando o faro, ora. — E a Laurinha saiu com uma cara de dar medo, tendo o Carlos atrás dela.

Andando com muito cuidado para não fazer barulho atravessaram uma grande sala e entraram em um comprido corredor meio penumbroso. Até agora tinha sido fácil. Os serviçais encontravam-se na cozinha ou no quintal da mansão, esperando que a patroa acordasse. Au, au, au... au, au... Os dois pequenos audaciosos ouviram os latidos e seguiram na direção deles, que pareciam vir de um lugar distante. Mas não, eles vinham do interior da casa... do...

— Do subsolo. — Disseram os dois um para o outro, bem baixinho.

À frente deles havia um porão, cuja porta não estava trancada. Desceram uma primeira escada, uma segunda e uma terceira. Aí viram um quadro muito triste: vários dálmatas, muitos dálmatas, incontáveis dálmatas dentro de jaulas recebendo raios de sol artificial. Aliás, tudo ali, como os meninos iriam constatar, era artificial: o sol, a lua, as estrelas, a comida, a água... Algumas máquinas dispostas no imenso calabouço produziam a ilusão do sol e da lua; água e comida em forma de cápsulas e imitavam até o som de outros animais para acalmar os cães.

— Será que não vai aparecer ninguém por aqui? — Perguntou Laurinha mais para si mesmo do que para o Carlos.

— É melhor a gente sair daqui. Vamos. — Disse Carlos com um medo evidente.

— Não. Vamos tentar soltar os cães.

Mal a Laurinha terminou de falar, ouviu-se um clique e apareceu uma grande tela na parede e, na tela, a figura de Malvina Cruela. Uma voz grave, que fazia estremecer, preencheu o aposento.

— Ah! Então são vocês os invasores da minha casa, detectados pelo radar, hein. Que vieram fazer aqui? — Perguntou a malvada, mas não deu aos meninos tempo de dizer nada. — Seja o que for que vieram fazer, não interessa. São meus prisioneiros. Lembram-se da história de João e Maria? Vocês vão ser bem alimentados e, quando estiverem bem gordinhos vão ter serventia... Ah, ah, ah, ah, ah...

Horrorizados, os meninos escutaram a batida de uma porta e o barulho de uma chave na fechadura. Carlos quis chorar, mas Laura deu-lhe força:

— Não vamos ficar muito tempo aqui. Nossos pais vão nos resgatar.

Há dois dias os pais das crianças e alguns policiais as procuravam. A única pista: eles haviam subido a colina para passear.

—Só podem ter entrado na casa da Cruela, concluíram os soldados. E a bruxa os aprisionou. Vamos esperar que anoiteça e escalar o muro de pedra da mansão.

— Mas a casa tem alarme e radar. — Avisaram os pais do Carlos.

— Sim, mas o radar só detecta alguém ou alguma coisa a partir de determinada altura. E o alarme é fácil desativar. Temos um aparelho eletrônico que faz isso com a maior facilidade.

Assim que anoiteceu, os soldados e os pais subiram a colina e conseguiram entrar na casa por uma janela dos fundos. Com as armas destravadas, alcançaram a sala de jantar, onde se refastelava a Cruela com uma bela e suculenta lagosta ao molho, e à cozinha, onde se encontravam reunidos todos os empregados, esperando um chamado da patroa. Os serviçais foram obrigados a dizer onde estavam os meninos. Enquanto os soldados e os pais resgatavam as crianças, deixaram a bruxa amarrada a uma cadeira. Minutos depois, quando voltaram à sala, ouviram o barulho de um helicóptero. Procuraram a Cruela, mas não a encontraram. Ora, o campo ficou livre. Ela, então, assoviou o assovio combinado com o piloto do helicóptero, que não estava com os empregados, mas escondido. Ele entrou e d esamarrou a patroa. Correram os dois para o heliporto disfarçado, e a máquina voadora, pilotada com perícia, e com as luzes momentaneamente apagadas, confundiu-se com a escuridão.

Malvina Cruela deu uma gargalhada e disse para o piloto:

— Vamos tirar umas longas férias no Caribe. Aqui os meus advogados resolverão tudo. Quando voltarmos, a tempestade já terá passado e começarei tudo de novo.

Enquanto o helicóptero transportava a bruxa para as férias antecipadas, as crianças foram levadas, cada uma para sua casa. Os cães ainda ficariam presos por uma noite. No dia seguinte bem cedo, a carrocinha iria apanhá-los. E começaria a luta por adoção. Como eram muitos animais, despachariam alguns para outros estados.

Carlos e Laura iriam ajudar no resgate, e cada um ganharia um dálmata bebê.

Fonte:
A Autora

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