sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Affonso Romano de Sant'Anna (Belafonte e Mister Ibidem)

Olhem que estorinha mais comovente narrada por Harry Belafonte num documentário sobre sua vida feita em Cuba quando ele lá esteve.

 Quando garoto, no Harlem, não tinha uma vida diferente dos outros garotos pobres. Sua mãe trabalhava heroicamente e ele mesmo livrava algum levando daqui para ali listas com resultados do jogo. Isto lhe dava uma sensação ambígua. Ao mesmo tempo em que se sentia útil ganhando algum dinheiro, também tinha um secreto prazer em transgredir a lei. Sentia-se, como os negros, ao mesmo tempo dentro e fora da sociedade.

 Sua vida passou por uma mudança súbita quando entrou para o Exército. Chegou às suas mãos um livro escrito por um famoso lutador de boxe negro. Ficou imediatamente seduzido pelas palavras do autor e pelas suas idéias. Pela primeira vez teve noção de que os negros também podiam ter certa dignidade diante da vida. Ia lendo e se maravilhando. O autor contava suas experiências pessoais para sobreviver na sociedade controlada pelos brancos, mas, ao mesmo tempo, despertava uma consciência de luta. Aquilo tudo era novo para Belafonte. Falar dessas coisas ainda não era permitido, como nos anos 60, abertamente.

 Lendo o livro, deu-se conta de algo curioso. No meio das frases, às vezes aparecia um número. Um número em cima de certas palavras. Achava aquilo estranho, mas não tinha coragem de perguntar ao seus colegas de armas sobre o significado de tais números. Ia lendo, e, de repente, surgia aquele número lá em cima.

 É claro que acabou descobrindo que havia uma relação entre esses números e uma série de observações que vinham no pé da página. Às vezes era algum comentário, outras vezes apenas a indicação de um livro.

 Então ele pensou: se esse homem que é tão importante está citando esses livros e esses autores, é sinal que esses autores e livros também são importantes.

 Não teve dúvidas. Anotou todos aqueles autores de livros e resolveu também lê-los. Foi assim fazendo a sua bibliotecazinha particular.

 Belafonte, no entanto, notou uma outra coisa intrigante nas leituras que fazia. Entre os muitos autores citados pelo seu ídolo, havia um tal de Ibidem.

 Pensou: esse Ibidem deve ser realmente importante, pois aparece em quase todas as páginas. E se ele é o mais citado, é esse o autor que devo ler com mais cuidado e carinho.

 Quando regressou da guerra, resolveu então comprar todos os livros que encontrasse desse senhor Ibidem. Além do mais, pela legislação amaericana, os que foram para a guerra (e especialmente os negros) teriam acesso à universidade sem nenhuma exigência. Era uma forma de o sistema pagar seus remorsos e gratificar seus defensores.

 O que fez, então, o nosso Belafonte?

 Não teve dúvidas. Numa das primeiras manhãs em Nova York começou a percorrer as livrarias procurando livros do seu autor favorito: o senhor Ibidem.

 Entrava nas lojas meio sem jeito, começava a fuçar daqui e dali e nada. Passava das estantes de história para as estantes de psicologia e depois para as de filosofia e artes e nada.

 Procurava, procurava e não dava com nenhum livro assinado pelo tal Mr. Ibidem.

 Vencendo o natural constrangimento do negro na sociedade dos brancos, ousou perguntar a uma velhinha, que trabalhava numa dessas livrarias, se ela tinha livros de um escritor chamado Ibidem. Ela lhe disse que tal escritor não existia. Ele, furioso, chamou-a de racista, acusou-a de sonegar-lhe informação porque era preto. Brigou e saiu.

 Contando isto aos amigos, eles caíram na sua pele e lhe explicaram que ibidem não era autor, era uma informação nas notas dos livros significando: do mesmo autor, da mesma obra. Arrependido, voltou correndo à livraria para se desculpar com a velhinha. E ela não estava mais lá. Abandonara o emprego. Seguramente por minha causa, concluiu Belafonte, cheio de remorsos.

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