sábado, 8 de setembro de 2012

Carlos Drummond de Andrade (Resíduo)

 De tudo ficou um pouco
 Do meu medo. Do teu asco.
 Dos gritos gagos. Da rosa
 ficou um pouco

 Ficou um pouco de luz
 captada no chapéu.
 Nos olhos do rufião
 de ternura ficou um pouco
 (muito pouco).

 Pouco ficou deste pó
 de que teu branco sapato
 se cobriu. Ficaram poucas
 roupas, poucos véus rotos
 pouco, pouco, muito pouco.

 Mas de tudo fica um pouco.
 Da ponte bombardeada,
 de duas folhas de grama,
 do maço
 - vazio - de cigarros, ficou um pouco.

 Pois de tudo fica um pouco.
 Fica um pouco de teu queixo
 no queixo de tua filha.
 De teu áspero silêncio
 um pouco ficou, um pouco
 nos muros zangados,
 nas folhas, mudas, que sobem.

 Ficou um pouco de tudo
 no pires de porcelana,
 dragão partido, flor branca,
 ficou um pouco
 de ruga na vossa testa,
 retrato.

 Se de tudo fica um pouco,
 mas por que não ficaria
 um pouco de mim? no trem
 que leva ao norte, no barco,
 nos anúncios de jornal,
 um pouco de mim em Londres,
 um pouco de mim algures?
 na consoante?
 no poço?

 Um pouco fica oscilando
 na embocadura dos rios
 e os peixes não o evitam,
 um pouco: não está nos livros.

 De tudo fica um pouco.
 Não muito: de uma torneira
 pinga esta gota absurda,
 meio sal e meio álcool,
 salta esta perna de rã,
 este vidro de relógio
 partido em mil esperanças,
 este pescoço de cisne,
 este segredo infantil...
 De tudo ficou um pouco:
 de mim; de ti; de Abelardo.
 Cabelo na minha manga,
 de tudo ficou um pouco;
 vento nas orelhas minhas,
 simplório arroto, gemido
 de víscera inconformada,
 e minúsculos artefatos:
 campânula, alvéolo, cápsula
 de revólver... de aspirina.
 De tudo ficou um pouco.

 E de tudo fica um pouco.
 Oh abre os vidros de loção
 e abafa
 o insuportável mau cheiro da memória.

 Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
 e sob as ondas ritmadas
 e sob as nuvens e os ventos
 e sob as pontes e sob os túneis
 e sob as labaredas e sob o sarcasmo
 e sob a gosma e sob o vômito
 e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
 e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
 e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
 e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
 e sob os gonzos da família e da classe,
 fica sempre um pouco de tudo.
 Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. A Rosa do Povo, em Nova Reunião vol.1

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