quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão VI)

Ninguém se lembrou, até agora, de que transcorre neste mês de novembro o aniversário dos 30 anos do lançamento de Os Tambores de São Luís. Publicado em 1975, pela Editora José Olympio, este livro é um romance em duas marchas. Numa delas, a acelerada, o escritor Josué Montello tenta retratar os vários ciclos da História do Maranhão. Na outra marcha, a mais lenta, é que transcorre o texto em si: uma história que conta a saga do negro e o seu martírio sob a escravidão no Brasil. É, portanto, um extraordinário romance humano, ao estilo de uma impressionante novela de mistério, que começa com um episódio imprevisto – o encontro de um negro assassinado dentro de um bar, numa velha noite de 1915.

A partir daí, a narrativa avança como um vasto mural onde Josué Montello dispõe seu glorioso bando de filhos do povo. Damião, Benigna, Barão, o Padre Tracajá, Santinha, Genoveva Pia, Mestre Ambrósio, dona Calu, dona Bembém, a Comadre Ludovina, o Maneco Ourives – seres vivos da família literária de Montello, juntamente com as quatro centenas de personagens, nos quais o romancista procurou insuflar o alento da vida, como seres reais. Os Tambores de São Luís está consagrado como uma das grandes obras da ficção nacional. É um romance histórico que contextualiza, do ponto de vista social, cultural e político, o universo em que se desenvolveu a sociedade escravagista brasileira.

Aos 58 anos de idade, quando lançou o seu grande romance, Josué Montello procurou, com Os Tambores de São Luís, fixar sobretudo o problema do negro. Do negro e de suas lutas. Do negro e de suas tragédias. Do negro e de sua vagarosa ascensão social. Do ponto de vista técnico, no plano meramente narrativo, o romancista maranhense cruzou duas linhas básicas. Uma, representada pelo romance objetivo, que se resume no espaço de uma única noite, tendo como episódio central a caminhada de um negro de 80 anos. É quando surge Damião atravessando a cidade a pé (por não ter encontrado um carro que o levasse ao outro lado de São Luís), para conhecer o trineto que acabara de nascer. Essa caminhada é feita com o acompanhamento simbólico do bater dos tambores rituais, na Casa das Minas.

Com 483 páginas, Os Tambores de São Luís é a crônica de uma época, sem deixar de ser obra de ficção; é um relato romanesco de ordem histórica, onde também avultam os sobradões de azulejos, os portais de pedra, os mirantes, os balcões sobre a calçada de cantaria, as sacadas de ferro, o velho casario, as ruas, as praças, os becos da cidade. Nos seus Diários o próprio Montello confessa que, com Os Tambores de São Luís, conseguiu compor a sua maior obra, aquela que efetivamente sintetiza o seu talento e a sua operosidade de romancista. São palavras do escritor: De quantos romances escrevi até hoje, nesta minha língua transparente e objetiva, foram Os Tambores de São Luís, na sua concepção geral e na sua urdidura, aquele que me obrigou a uma atenção maior, como pesquisa, como rigor técnico, dada a circunstância de que nele a ficção se acha amalgamada à matéria rigorosamente histórica.

Numa das passagens do Diário do Entardecer, Montello revela que, ao escrever Os Tambores de São Luís, concentrou o melhor de si mesmo, como processo técnico e como linguagem, além de ter pago uma velha dívida para com a raça negra. Recompus-lhe o martírio, como talvez não o pudesse fazer um escritor negro, e demarquei-lhe a ascensão vertical, com a figura central de um preto de gênio, capaz de ombrear-se com um Teodoro Sampaio, um Cruz e Souza, um Juliano Moreira ou um Nascimento Moraes.


Embora sua ação romanesca componha uma jornada que se inicia às 22 horas de uma noite de 1915 para fechar-se às 9 horas da manhã seguinte, o relato retrocede aos vários ciclos da História maranhense, misturando presente e passado, com mais de 400 personagens, entre bispos, padres, governadores, boêmios, raparigas, estudantes, professores, oradores populares, negros de ganho, artistas, tipos de rua, tentando reconstituir toda a complexa vida de uma cidade.

O escritor Jorge Amado (1912-2001), autor de Gabriela Cravo e Canela, retrata em muitos de seus romances os negros do Recôncavo Baiano. Josué Montello dedicou Os Tambores de São Luís aos negros do Maranhão. À luz da experiência escravista brasileira, ele focaliza o árduo trabalho dos negros no campo, de manhã à noite, e que só se atenuava quando estrondavam as grandes chuvas.

Na amplidão de seu livro monumental, Montello retrata ainda o cenário, o ambiente cultural, o sistema político-econômico, o dia-a-dia das fazendas, as tensões e os enfrentamentos que marcaram as relações entre senhores e escravos. É um romance que evoca imagens dos tempos do cativeiro reconstituídas de maneira formidável pela imaginação do romancista.

Obra-prima - Tal é a identificação do autor com a sua obra maior que, num de seus artigos, Montello conta que, de início, ao compor a linha mestra de Os Tambores de São Luís, havia pensado num conjunto de oito romances, a que se consagraria pelo resto da vida, todos eles com um personagem negro central, com o mesmo nome, Damião, de modo a compor uma dinastia, sintetizando a mesma luta, a mesma comunhão fraterna, a mesma operosidade construtiva, a mesma dignidade exemplar, sem esquecer o espírito mágico que abre ao negro um caminho peculiar, como símbolo e síntese, na seqüência das narrativas conjugadas. Ocorre, porém, que ninguém sabe o limite da própria vida, e eu pretendia ressarcir uma dívida, no limite natural de minhas possibilidades. Daí ter preferido concentrar-me num único romance, denso, compacto, o quanto possível fiel à verdade dos fatos, dada a compreensão de que todo romance é história, sempre que se ajusta à moldura do tempo em que decorre a sua ação fundamental. Portanto, o mais longo romance de Josué Montello, Os Tambores de São Luís, passa-se, todo ele, numa noite, e é nessa noite que aparecem cerca de 400 personagens, condensando os três séculos da saga romanesca da escravidão no Brasil.

Dividido em 58 capítulos, o romance, nos seus lances fundamentais, recompõe episódios marcantes recolhidos no terreno dos usos e costumes do Maranhão. Em cenas capitais da narrativa, aparecem o famoso crime da Baronesa de Grajaú, de tanta repercussão na sociedade maranhense do tempo do Império; a paixão doentia do desembargador Pontes Visgueiro por sua amante Mariquinhas; os conflitos entre senhores e escravos; os rompantes de Donana Jansen, os voduns, as noviches e as nochês – Mãe Hosana, Mãe Maria Quirina e Mãe Andresa – da Casa das Minas, e Dom Cosme Bento das Chagas, tutor e imperador das liberdades bem-te-vis.

O escritor Dunshee de Abranches, autor de O cativeiro, livro inteiramente consagrado à escravidão maranhense, também entra como personagem do romance: é o João Moura (como ele se assinava), que aparece ao lado de Damião, nos comícios populares em favor da abolição.

Pouco antes da derradeira página do romance, o último capítulo do livro se volta para o adeus ao poeta Joaquim de Sousa Andrade, em cujo enterro avulta o ataúde envolto na bandeira do Estado, idealizada pelo próprio Sousândrade, com as listas branca, vermelha e negra, simbolizando a fusão das raças na formação do povo brasileiro, e mais a estrela branca sobre campo azul, representativa da unidade autônoma do Maranhão.

Antes de Montello, outro ficcionista maranhense, Coelho Neto (1864-1934), teve igual propósito, com O rei negro, considerado o seu melhor romance. Entretanto, Coelho Neto focalizou apenas um episódio do cativeiro. Montello entendeu que o tema comportava horizonte mais vasto, que abarcasse a escravidão no seu conjunto, com a luta, o instinto da raça, a singularidade, a discussão nacional em torno do problema, a superação dos argumentos de ordem econômica e a busca da prevalência dos ideais e princípios fundamentais da dignidade humana. À luz da interpretação do romancista maranhense, Os Tambores de São Luís faz sobressair a atuação dos jovens na campanha abolicionista, ressalta a participação dos militares e conclui a obra salientando a Abolição como a grande festa do povo unido e vitorioso.

Num romance como Os Tambores de São Luís, Montello quis infundir a verdade história – a partir de seu ponto de vista – como a própria substância ficcional. Também é importante ressaltar a narrativa em que o escritor procura fixar o outro lado do painel que compõe Os Tambores de São Luís. Ou seja: o esplendor e a decadência da aristocracia local, tanto no seu aspecto simbólico, como resumo de todo o processo de declínio da camada superior da sociedade brasileira, no tempo do Império, quanto no seu rigor histórico, baseado no testemunho dos depoimentos, nos textos escritos, na tradição maranhense.

Com Os Tambores de São Luís, confirma-se que Montello é uma das mais importantes figuras da ficção em Língua Portuguesa surgidas na primeira metade do século XX. E confirma-se, também, que as grandes obras literárias serão sempre fonte de deleite, conhecimento e de vida:

São Luís está coberta pelo negro manto de suas noites estreladas, sibila o vento nas ruas em ladeira, chiam os bicos de gás nos lampiões vigilantes, um carro estronda as rodas nas pedras do calçamento, enquanto retinem as ferraduras dos cavalos espicaçados pela taca do cocheiro, e eis que ressoam os tambores do querebetã da Rua de São Pantaleão, graves, nervosos, compassados, guardando intacto o seu batuque primitivo, e que hoje reúne os negros livres como outrora reunia os negros escravos. Sobretudo os negros escravos. E estes vinham aos dois, aos três, ou sozinhos, protegidos pelas sombras das ruas desertas, e ali reencontravam seus deuses, seus cantos e seus irmãos. Esqueciam-se do cativeiro, não tinham mais senhores nem feitores, e sim voduns, que os habitavam e protegiam. Pouco importava que trouxessem no corpo as marcas das cangas, dos libambos, dos vira-mundos, das gonilhas e das gargalheiras. Ou que ali entrassem com as mordaças e as máscaras de flandres. Os tambores retumbavam, e eles, os cativos, eram novamente os donos de suas horas, senhores de suas vontades.

Damião a ouvir o bater de tambores rituais, com a sua peregrinação pelos quatro cantos da cidade na companhia daqueles tantantãs compassados, tocados por mãos de negros. Era o mesmo batecum inconfundível, que todos os ouvidos podem ouvir, mas que só os negros realmente escutam, com as vivências nostálgicas de sua origem africana.

Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
Edição 120. 20 de janeiro de 2006

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