sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Guy de Maupassant (Uma Aventura Parisiense)

Haverá na mulher sentimento mais vivo que a curiosidade? Ah!, saber, conhecer, chegar àquilo
que se sonhou! Do que seria ela capaz para o conseguir! Uma mulher, quando a sua curiosidade impaciente desperta, será capaz de cometer todas as loucuras, todas as imprudências, todas as audácias, não recuará diante de nada. Falo das mulheres verdadeiramente mulheres, dotadas daquele espírito de fundo triplo que à superfície parece racional e frio, mas cujos três compartimentos secretos estão cheios: um, de inquietação feminina sempre agitada; outro, de manha colorida de boa-fé, daquela astúcia dos devotos, sofisticada e temível; e o último, por fim, de canalhice encantadora, de refinado embuste, de deliciosa perfídia, de todas aquelas perversas qualidades que levam ao suicídio os amantes imbecilmente crédulos, mas que deixam os outros encantados.

Esta cuja aventura pretendo contar era uma pobre provinciana, até então insipidamente honesta. A sua vida, aparentemente calma, decorria no lar, entre um marido muito ocupado e dois filhos, que ela educava como mulher irrepreensível que era. Mas o seu coração fremia de uma insaciada curiosidade, de uma sofreguidão de desconhecido. Pensava em Paris incessantemente e lia avidamente os jornais mundanos. A descrição das festas, das toaletes, das alegrias, punha-lhe os desejos a ferver; mas o que sobretudo misteriosamente a perturbava eram os ecos cheios de subentendidos, os véus mal soerguidos em frases hábeis, e que deixam entrever horizontes de prazeres culposos e devastadores.

Lá de longe, via Paris numa apoteose de luxo magnífico e corrupto. E durante as longas noites de sonhos, embalada pelo ressonar compassado do marido que dormia a seu lado, deitada de costas, com um lenço na cabeça, pensava naqueles homens conhecidos cujos nomes aparecem nas primeiras páginas dos jornais como sendo grandes estrelas num céu escuro; e imaginava a vida entontecedora que levavam, com constantes deboches, orgias à antiga assustadoramente voluptuosas e refinamentos de sensualidade tão complicados que nem sequer era capaz de imaginá-los.

Os bulevares pareciam-lhe ser uma espécie de abismo das paixões humanas; e todas as suas casas tinham de certeza lá dentro prodigiosos mistérios de amor.

Ela, porém, sentia-se envelhecer. Envelhecia sem nada ter conhecido da vida, a não ser aquelas ocupações regulares, odiosamente monótonas e banais que constituem, segundo se diz, a felicidade do lar. Era bonita ainda, conservada naquela existência tranquila como um fruto de inverno num armário fechado; mas roída, devastada, transtornada por secretos ardores. Perguntava a si mesma se haveria de morrer sem ter conhecido todas aquelas exaltações de embriaguez condenatória, sem se ter lançado inteirinha uma vez, ao menos uma só vez, naquela onda de volúpias parisienses.

Com uma longa perseverança, preparou uma viagem a Paris, inventou um pretexto, fez-se convidada por uns parentes, e, como o marido não podia acompanhá-la, foi sozinha. Mal chegou, foi capaz de imaginar razões que, se fosse preciso, lhe permitiriam ausentar-se dois dias ou, antes, duas noites, na melhor das hipóteses, por ter encontrado, dizia ela, uns amigos que viviam no campo perto da cidade.

E procurou. Percorreu os bulevares sem ver nada, a não ser o vício errante e numerado. Sondou com os próprios olhos os grandes cafés, leu atentamente a pequena correspondência do Fígaro que lhe surgia em cada manhã como um toque a rebate, uma chamada ao amor. E nunca nada a punha na pista daquelas grandes orgias de artistas e de atrizes; nada lhe revelava os templos daqueles deboches que imaginava fechados por uma palavra mágica como a caverna das Mil e Uma Noites e aquelas catacumbas de Roma, onde se oficiavam em segredo os mistérios de uma religião perseguida.

Os parentes, pequenos burgueses, não podiam dar-lhe a conhecer nenhum daqueles homens conhecidos cujos nomes lhe zumbiam na cabeça; e, desesperada, pensava já em não pensar mais nisso, quando o acaso veio em seu auxílio. 

Um dia, descia ela a rua da Chaussée-d’Antin, parou a contemplar uma loja cheia daqueles bibelôs japoneses tão coloridos que põem nos olhos uma espécie de alegria. Estava examinando os pequenos marfins cómicos, os grandes vasos de esmaltes flamejantes, os estranhos bronzes, e eis que ouviu, no interior da loja, o patrão que, com grandes reverências, mostrava a um senhor gordo e baixo, de cabeça calva e queixo cinzento, um enorme mono barrigudo, peça única, dizia ele.

E a cada frase do comerciante, o nome do amador, um nome célebre, soava como um toque de clarim. Os outros clientes, mulheres novas, senhores elegantes, contemplavam com uma olhadela furtiva e rápida, com um olhar conveniente e manifestamente respeitoso, o famoso escritor que, por seu lado, contemplava apaixonadamente o mono de porcelana. Eram tão feios um como o outro, feios como dois irmãos saídos da mesma costela.

O comerciante dizia: «Por ser para si, senhor Jean Varin, deixo-o por mil francos; é precisamente o que ele me custa. Para qualquer outra pessoa seriam mil e quinhentos; mas eu tenho consideração pela minha clientela de artistas e faço-lhe preços especiais. Vêm todos à minha casa, senhor Jean Varin. Ainda ontem o senhor Busnach me comprou uma grande taça antiga. No outro dia vendi dois tocheiros como estes (são ou não são uma beleza?) ao senhor Alexandre Dumas. Olhe, essa peça que aí tem, se o senhor Zola a visse já estaria vendida, senhor Varin.» 

O escritor, muito perplexo, hesitava, solicitado pelo objeto, mas a pensar no montante de dinheiro; e dava tanta atenção aos olhares como se estivesse sozinho num deserto. 

Ela tinha entrado temerosa, de olhos descaradamente postos nele, e nem sequer perguntava a si mesma se era belo, elegante ou jovem. Era Jean Varin em pessoa. Jean Varin! 

Depois de uma longa luta, de uma dolorosa hesitação, ele pousou o vaso em cima de uma mesa. «Não, é caro demais.»

O comerciante redobrava de eloquência. «Oh, senhor Jean Varin, caro demais? Isto vale à vontade uns dois mil francos!»

O homem de letras replicou tristemente sem deixar de olhar para o homenzinho de olhos de esmalte: «Não digo que não; mas é caro demais para mim.»

Então, ela, tomada de uma audácia enlouquecida, avançou: «Para mim, quanto vale este bonequinho?»

O comerciante, surpreendido, replicou: «Mil e quinhentos francos, minha senhora.»

«Fico com ele.»

O escritor, que até então nem sequer tinha dado por ela, virou-se de repente e olhou-a dos pés à cabeça com olhos semicerrados de observador; depois, com olhos de conhecedor, observou-a minuciosamente.

Era encantadora, animada, estava de súbito iluminada por aquela chama que até então estava adormecida dentro dela. E além disso uma mulher que compra assim um bibelô por mil e quinhentos francos não é uma qualquer.

Ela teve então um gesto de sedutora delicadeza: virando-se para ele, com a voz a tremer, disse-lhe: «Desculpe, cavalheiro, eu fui decerto um pouco precipitada; provavelmente o senhor ainda não tinha dito a sua última palavra.»

Ele inclinou-se: «Já a tinha dito, minha senhora.»

E logo ela, muito emocionada: «Enfim, meu caro senhor, hoje ou mais tarde, se lhe convier mudar de opinião, este bibelô é seu. Eu só o comprei porque ele lhe tinha agradado.»

Ele sorriu, visivelmente lisonjeado. «Quer dizer que me conhece?», disse.

Então ela falou-lhe da sua admiração, citou-lhe as obras, foi eloquente.

Para conversar, ele tinha-se encostado a um móvel, enquanto mergulhava nela os seus olhos penetrantes. Procurava adivinhá-la. De vez em quando, o lojista, satisfeito por ter na mão aquela publicidade viva, como tinham entrado novos clientes gritava na outra extremidade da loja: «Ora veja-me isto, senhor Jean Varin, não é belo?» Então todas as cabeças se endireitavam, e ela estremecia de prazer por ser vista assim a conversar intimamente com um ilustre personagem.

Finalmente inebriada, foi então capaz de uma audácia suprema, como a dos generais que vão proceder ao assalto. «Caro senhor, disse ela, dê-me um grande, um grande prazer. Permita-me que lhe ofereça este mono como recordação de uma mulher que o admira apaixonadamente e que o senhor conheceu apenas durante dez minutos.»

Ele recusou. Ela insistia. Ele resistiu, muito divertido, rindo com vontade.

Ela, obstinada, disse-lhe: «Muito bem! Vou entregá-lo já em sua casa; onde é que mora?»

Ele recusou-se a dar-lhe o endereço; mas ela ficou a conhecê-la porque a pediu ao lojista e, uma vez paga a compra, escapuliu-se e foi direta a um trem de praça. O escritor correu para a alcançar, pois não queria expor-se a receber aquele presente que não saberia a quem atribuir. Apanhou-a quando ela ia a subir para a tipoia e precipitou-se, quase caiu por cima dela, empurrado pelo carro que começava a andar; e então sentou-se a seu lado, muito aborrecido. 

Por mais que ele pedisse, que insistisse, ela mostrou-se intratável. Quando iam a chegar diante da porta, ela apresentou as suas condições: «Aceito não lhe entregar isto se o senhor cumprir hoje todas as minhas vontades.»

A coisa pareceu-lhe tão cómica que ele aceitou.

Ela perguntou: «Habitualmente que é que faz a esta hora?»

Depois de alguma hesitação ele respondeu: «Ando a passear.»

Então, em voz resoluta, ela ordenou ao cocheiro: «Para o Bosque!»

E partiram para lá.

Ele foi obrigado a indicar-lhe os nomes de todas as mulheres conhecidas, sobretudo as devassas, com pormenores íntimos acerca delas, da sua vida, dos seus hábitos, das suas casas, dos seus vícios.

Caiu a tarde. «Que faz o senhor todos os dias a esta hora?», disse ela.

Ele respondeu a rir: «Tomo absinto.»

Então, com uma expressão séria, ela acrescentou: «Então, meu caro senhor, vamos tomar absinto.»

Entraram num grande café do bulevar que ele frequentava e onde foi encontrar confrades. Apresentou-os a todos. Ela estava louca de alegria. E na sua cabeça ressoavam incessantemente estas palavras: «Até que enfim! Até que enfim!»

O tempo passava e ela perguntou: «São horas do seu jantar?»

Ele respondeu: «Pois são, minha senhora.»

«Então, caro senhor, vamos jantar.»

E à saída do café Bignon: «E à noite, que é que faz?», perguntou ela.

Ele olhou-a fixamente: «Depende. Às vezes vou ao teatro.»

«Muito bem, vamos ao teatro.»

Entraram no Vaudeville, com entradas de favor graças a ele, e, glória suprema, toda a sala a viu ao lado dele, sentada no balcão.

Quando o espetáculo acabou ele beijou-lhe galantemente a mão: «Resta-me, minha senhora, agradecer-lhe este dia delicioso…» 

Ela interrompeu-o: «A estas horas que é que faz todas as noites?»

«Ora… bem… volto para casa.»

Ela desatou a rir, num riso que tremia.

«Pois bem, caro senhor, vamos para sua casa.»

E não falaram mais. Ela estremecia de vez em quando, sacudida dos pés à cabeça, com vontade de fugir e vontade de ficar, mas no fundo do coração com um muito firme desejo de ir até ao fim.

Na escada, agarrava-se ao corrimão, de tão viva que era a emoção que sentia; e ele subia à frente, ofegante, com um fósforo aceso na mão.

Quando chegou ao quarto ela despiu-se muito depressa e deslizou para dentro da cama sem dizer palavra; e ficou à espera, encolhida contra a parede.

Mas era uma mulher simples, tanto quanto o pode ser a esposa legítima de um notário da província, e ele mais exigente que um paxá de três caudatários. Não se entenderam em nada. Então ele adormeceu. A noite passou-se, apenas perturbada pelo tiquetaque do relógio, enquanto ela, imóvel, pensava nas noites conjugais; e sob os raios amarelados de uma lanterna chinesa olhava, pesarosa, para aquele homenzinho de costas, ao seu lado, redondinho, cuja barriga soerguia o lençol como uma bola cheia de gás. Ressonava com o ruído de um tubo de órgão, fungava prolongadamente, com estrangulamentos cómicos. Os seus vinte cabelos aproveitavam o repouso para se arrepiarem esquisitamente, fartos da sua longa permanência imóvel por cima da cabeça nua cujos estragos era sua obrigação tapar. E de um canto da boca entreaberta escorria-lhe um fio de saliva.

A aurora insinuou por fim um pouco de luz do dia por entre os cortinados corridos. Ela levantou-se, vestiu-se sem ruído e já tinha a porta meio aberta quando fez ranger a fechadura e ele acordou a esfregar os olhos.

Deixou-se ficar alguns segundos até recuperar completamente a consciência, e depois, quando recordou toda a aventura, perguntou: «Então, vai-se embora?»

Ela permanecia de pé, confusa. Balbuciou: «Pois, já é de manhã.»

Ele sentou-se na cama: «Bem, disse, é a minha vez de ter qualquer coisa a pedir-lhe.»

Ela não respondia. Ele continuou: «Meu Deus, a senhora desde ontem que me deixa espantado. Seja franca, confesse-me porque é que fez isto tudo; é que eu não estou a perceber nada.»

Ela aproximou-se devagarinho, a corar como uma virgem. «Eu quis conhecer… o… o vício… e, pois é… bem… não tem graça nenhuma.»

Fugiu, desceu a escada, precipitou-se para a rua.

O exército dos varredores varria. Varriam os passeios, as calçadas, empurrando todas as imundícies para a valeta. Com o mesmo gesto regular, com um gesto de ceifeiros nos prados, empurravam as lamas em semicírculo à sua frente; e, de rua em rua, ela ia deparando com eles como fantoches montados, caminhando automaticamente movidos pela mesma mola. E pareceu-lhe que também nela acabavam de varrer qualquer coisa, de empurrar para a valeta,  ara o esgoto, os seus sonhos excessivamente exaltados.

Voltou a casa ofegante, gelada, guardando apenas na cabeça a sensação daquele gesto das vassouras que limpam Paris de manhãzinha.

E, mal chegou ao seu quarto, caiu em soluços.

Fonte: Guy de Maupassant. Contos escolhidos. Publicado originalmente em 1881. Disponível em Domínio Público.

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