quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Pedro Milan (Miopia)

- Pai, aquele casal é cego?

- Que é isso, menino! Fala baixo! E aí, por que tá dizendo isso?

- Oi, pai, o homem está com as meias no avesso e a mulher pisou no cocô do Batuta e nem se tocou.

- Êta moleque bisbilhoteiro. Vai, brincar, vai.

Mas até que o danado tinha razão. Terêncio e Ambrósia, o  dito casal que o guri pensava ser cego, estava bem próximo disso. Enxergavam muito mal, mas, cá entre nós, recusavam-se terminantemente a admitir tal deficiência. Isso gerava, vez por outra, brigas homéricas, o que não raramente chegava a alarmar a vizinhança. Somente concordavam com a própria miopia quando lhes era conveniente.

- Bró, (esse era o apelido que ele lhe pusera), passa essa camisa pra mim?

- Ah! Nem vem! Você mesmo diz que eu não enxergo bem. Vai que fica mal passada  e eu vou ter que escutar até o Natal. Amanhã a empregada passa.

Ou então:

- Terê, me leva até a casa da mamãe?

- Negativo! Você sabe muito bem que eu não enxergo direito para dirigir a noite. E se acontecer alguma coisa...? Vai de ônibus ou toma um táxi.

E assim por diante.

Uma coisa não se pode negar: na hora da eventual emergência havia um alto espírito de solidariedade entre eles. Esqueciam-se as divergências e o socorro ao vitimado era de uma prontidão de dar inveja.

Um dia, por exemplo, o Terêncio  estava tranquilamente lendo, ou melhor, tentando ler o seu jornal, quando foi  abruptamente arrancado de seu delicioso torpor pelos berros de Ambrósia:

- Terê!  - Gritava ela. – Vem matar uma perereca  aqui no banheiro!

Sabendo do pavor que ela nutria por anfíbios, o  homem encheu-se de coragem, armou-se do chinelo e partiu resoluto pensando fixamente em eliminar o terrível monstro que molestava sua companheira.

Chegando à porta do banheiro, indagou:

- Onde está o bicho?

- Está ali, atrás do vaso.

- Vaso!? Que vaso!? Você colocou planta no banheiro, mulher!?

- Vaso sanitário, idiota! Privada! Sabe o que é privada?

Diante de tal grosseria Terêncio bem que pensou em recusar-se a prestar o serviço, o que , por certo, faria com que Ambrósia não deixasse barato. Até um divórcio não ficaria fora de cogitação. Mas Terê ainda teve que ouvir:

- Vai logo, homem! Tá com medo?

Receoso de que tal interpretação pudesse repercutir entre os vizinhos e amigos, partiu para o ataque do suposto animal, sem antes  dirigir um olhar fulminante e dar um “chega prá lá” na mulher. Embora algo temeroso, debruçou-se sobre o tal “vaso”, levantou o chinelo, relutou, e depois, disse:

- Isto aqui não me parece ser sapo, ou coisa assim. Tem mais jeito de mariposa. E das pequenas.

Mal terminava a frase e já a cara-metade empunhava valentemente o frasco se inseticida. Fsssss...     Fssssss....  Fssss...

- Chega, mulher! Desse jeito quem vai morrer somos nós!

- Então, espia lá e vê se o bicho já morreu.

Movido por outro arroubo de coragem, Terêncio empurrou com a ponta do chinelo aquela horrenda criatura, levando-a até um ponto onde a luz que vinha da janela permitia ver melhor  (ou simplesmente ver).

Vocês podem não acreditar, mas o que causou esta enorme tensão e por pouco não acaba com aquela perfeita união, era apenas e tão somente um “band-aid” usado, que  um deles havia tentado lançar ao cesto do banheiro, e errou o alvo.

Fonte: www.sorocult.com/el/view.php-cod=1463.htm (desativado). Acesso em 09.01.2016.

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