terça-feira, 12 de outubro de 2021

Hermínio Bello de Carvalho (Lia de Itamaracá)

Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na Ilha de Itamaracá
(Teca Calazans)


Enquanto Lia não vem, é Dona Creusa que vai desfiando histórias. É a proprietária do "Sargaço" que comprou em 1973, ali no Jaguaribe. Trabalha com frutos do mar em geral: peixada, lagosta, filé de agulha, ostra, marisco, camarão. E tem sururu, pirão de guaiamum, e, é claro, cerveja bem geladinha — indispensável quando o sol castiga fone a ilha de Itamaracá. Não, não ganha muito dinheiro não.

Agora mesmo, veja só, o bar só tem vocês aqui. Vocês, eu, o Dr. Bernardo, diretor do Manicômio, e o Gilberto Marques Paulo — Secretário de Justiça e, nas horas vagas, tocador de violão e seresteiro. E mais o Juca, filho de José Lopes — ex-Prefeito da ilha. Gilberto acaba de me fazer visitar a Casa Grande do Presídio. Estranho aqueles homens todos morando em mil e setecentos hectares de terra, cada um com sua família em casas bem feitinhas, plantando as verduras que comem, andando livres pela Ilha. É um trabalho de humanização que vem aplicando às penitenciárias, tarefa na qual se engajou Célia, sua mulher. Ela cuida dos menores, antes que cheguem à delinquência. Pergunto se eles não fogem, tão fácil é o caminho da fuga. Nos dias de hoje, com moradia e comida garantida para si e a família — para que se evadir? Não me dou ainda por satisfeito, vou aqui e ali conversando com alguns presidiários. Visito a Casa da Farinha, vejo-a em pleno funcionamento. Vasculho as estradas, puxo conversa e me lembro de um tempo em que tinha. um programa de violão e poesia que era transmitido de uma rádio instalada na Frei Caneca. Vivaldi e Fernando Pessoa eram de vez em quando entrecortados por gritos pavorosos, a pancadaria comendo solta no meio da noite. Um dia contarei essa história, passada nos idos de cinquenta.

"Lia já vem". Teca Calazans costumava passar uns tempos na Ilha e ia às cirandas de Dona Duda, no Janga — subúrbio de Olinda. E me parece que foi por lá que conheceu a Lia. Ouviu-lhe as cirandas, anotou algumas, e ainda compôs outra que ficou famosa em todo o Brasil, cantada pelo Quinteto Violado: "Essa ciranda quem me deu foi Lia/ Que mora na Ilha de Itamaracá". E aí a cirandeira virou símbolo da ilha, parte integrante de seu folclore. E vem ela chegando.

Bonita, essa Lia! Enorme mulher de metro e oitenta. Os cabelos desarrumados, blusa florida e calça jeans, pés gigantescos em sandália de couro cru. Não está nada à vontade, devemos ser mais alguns daqueles forasteiros que vêm para lhe tirar fotografias, posar ao lado se possível com um sorriso que por enquanto economiza, como também raciona as palavras. Mais mimetiza do que fala.

Dona Creusa parece um pouco a Neuma da Mangueira, bonita como ela. Cabelos brancos, manda renovar a cerveja e a cachaça, os filés de agulha. Queixa-se do preço do camarão, diz que todo ano tem Festival de Cirandas, mas que a vontade dela é botar ali em freme do bar uma espécie de palco cheio de luz. Para que Lia cante e cirandeie. No espaço que tinha, ergueram um barraco inútil que só atrapalhou a vida do bar. "E vive de que a Lia?" Da profissão de merendeira escolar. empregada do Estado. "Ganho salário". Quer dizer: esse mísero salário mínimo, que é uma vigésima parte do preço de uma diária das suítes presidenciais que nós pagamos para a primeira-dama desfilar seu eterno sorriso, coisa aliás muito rara no rosto de Lia, a de Itamaracá.

As cirandas são famosas: além do canto de Lia, existem os músicos que a acompanham: um surdo, piston, tarol e ganzá. Às vezes, ao invés do piston, um saxofone. Disco já gravou sim, na Rozenblit — isso em 1977. Diz que não viu a cor do dinheiro. Vai lá dentro do bar e traz a capa: Lia bonita. sorridente, florida. Cheirosa. Lamenta que lhe roubem as músicas que faz, mas o que se há de fazer? Direito autoral, direitos conexos — são coisas de que ela não ouviu falar, sabe apenas que a música a empobrece mais ainda. Pergunto se ela não quer participar do disco do Capiba, diz que vai sim e não tenho muito por que acreditar. Promessas deve receber a toda hora, nota-se isso no olhar entristecido que quase nunca se fixa no interlocutor, vagueia para um lado para outro, como se buscasse na linha do horizonte as palavras de seu fraseado curto, quase monocórdio.

E como é que é na hora da ciranda. hein Lia? “É cachorro amarrado, pau comendo!" Ai desamarra a boca, solta-se um pouco mais, parece que vejo os seios bufarem quando fala em ciranda. E começa cantar uma que Capiba lhe fez de presente: "Minha ciranda não é minha só/ é de todos nós!/ a melodia principal quem tira/ é a primeira voz/ pra se dançar cirandada/ juntamos mão com mão/ formando uma roda / cantando uma canção". Combino quase tudo: o dinheirinho que vai ganhar. ela fala dos músicos que precisa arregimentar. Vem mais uma rodada de pinga e mais peixe-agulha. Lia vai buscar seu Bezerra, do saxofone; e Marcelo do ganzá, Genuário do tarol, do surdo: precisa deles para a gravação.

A Ilha de Itamaracá começa a se parecer um pouco com a da Jipóia ou Jibóia, como queiram: lá de Angra dos Reis. Não a de agora, que nem mais a quero conhecer. Mas a dos tempos de meu avô Gregório que não conheci, e que era tido como o melhor violeiro do Estado do Rio.

A velha Florinda, sua mulher, vinha trazendo aviso:"Lá na ilha Grande tem um violeiro que anda prosando que é melhor do que você. Se aprepare”. Ele ia temperar (afinar) a viola, ela fazer o farnel. Desciam os dois, ela pegava o remo e ele só temperando, temperando. E que só voltasse vencedor. Essa herança de violeiro passou para os filhos, pegou de raspão num neto que ainda chegou a dedilhar uns clássicos e largou tudo pela poesia, mas agora ressurgiu num bisneto que está firme em Leo Brouwer, Villa-Lobos, Torroba. Lembro meu sobrinho Saulo, fico orgulhoso de meu avô Gregório e largo meus devaneios porque é hora de voltar ao mundo.

Claro que deveria explicar o que estou fazendo aqui em Recife: um disco para Capiba, história que já comecei a contar há duas semanas passadas e correu firme pelo Recife inteiro: todo o mundo de Pasquim na mão. Cansaço, emoção: e lá vou eu parar na Unicordis, outra crise de hipertensão — eu ali domesticado na sala branca, monitorizado para um eletro que vai apontar a polirritmia dos batimentos cardíacos, o coração já em compasso de frevo dedilhado pela "Valsa verde" de Capiba, pelo choro que Jacaré fez em minha homenagem, mas também pelos aborrecimentos todos que cercam a vida de um fazedor de cultura, de um brasileiro irremediável e que anda chorando à toa pelos cantos da vida — a serenidade escoando aos poucos, a tensão desses dias ameaçadores provocando a hipertensão — e ainda mais agora essa tal de Lia de Itamaracá, ora vejam só.

Lia chega ao estúdio: seu Bezerra se perdeu no caminho, daqui a pouco chegará. Os meninos da "Casa do Guia Mirim" de Olinda estão por aqui, para deitar recitação no disco de Capiba. E uma ciranda come solta no estúdio três por quatro da Somax. Lia cirandeira de Itamaracá ,toda sorridente e festeira, primeira-dama destituída de outros privilégios que não seu próprio talento de mulher do povo, assalariada com um mínimo que não lhe roubou ainda toda a alegria.

Estranha música, essa de seu povo! As cirandas pernambucanas de Lia estão na boca de toda a gente, na alegria das pessoas se dando as mãos. cirandando em volta dela. E na verdade essa mulher de quarenta anos, meiga às vezes e justamente desconfiada quase sempre, e para muitos apenas uma dessas peças de artesanato urdidas em barro e que vão ornamentar uma estante — até que se espatifem e ganham o caminho da lixeira. Pegaram o disco de Lia e o trataram como se fosse de barro. Nem ela tem um só, até porque nem escutaria: vitrola é coisa que deve existir em sua vida de merendeira escolar. Volta e meia um turista de ar dementado virá tirar-lhe uma foto e nisso eu fico toda hora me lembrando de meu querido Camafeu de Oxossi, toda hora requisitado no extinto Mercado Modelo para exibir o sorriso, o chapéu imenso, a fama de melhor sabedor da Bahia, elogio que lhe pespegou o Jorge Amado.

Deixo Lia à porta do estúdio. Parece até que está feliz. Por pouquinho deixa de cruzar com Mestre Capiba, que vem cheio de guizos no rosto, a felicidade lhe tomando a alma.

Vai com Deus, Lia! toma conta dele direitinho.
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Hermínio Bello de Carvalho nasceu em 1935, no Rio de Janeiro (RJ). Poeta, escritor, compositor e produtor musical, tem toda sua vida dedicada à música, com parceiros como Pixinguinha, Radamés Gnattali, Paulinho da Viola, Ivone Lara, Cartola, Chico Buarque, Baden Powell, e muitos mais. Foi o criador de "Rosa de Ouro", "Elizeth Cardoso, Jacob do Bandolim, Zimbo Trio e o Época de Ouro", "Caymmi em Concerto", entre outros. Tem 13 livros publicados, como "Poemas do amor maldito", "Mudando de conversa", "Cartas cariocas para Mário de Andrade", "Contradigo" e "Sessão Passatempo".

Fonte:
Jornal “Pasquim” nº 796, Rio de Janeiro (RJ): edição de 
27/09/1984 a 03/10/1984.

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