quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 37, 38 e 39


O TEMPO NA RUA

Fizesse bom ou mau tempo, o mendigo sentava-se às sete da manhã no terceiro degrau da escada da igreja e ali ficava até as doze. Era tão pontual que os transeuntes, querendo saber as horas, não olhavam para o relógio da torre; olhavam para ele. Cada quarto de hora estampava-se em suas mãos, e a cada trinta minutos as rugas de seu rosto indicavam a medida do tempo.

Quando o relógio foi retirado da torre, para conserto, e nunca mais voltou, a presença do mendigo cresceu de importância. Muita gente lhe rogava que estendesse a permanência até findar o dia. Recusou-se a atender, alegando que tinha outras obrigações à tarde, sem esclarecer quais fossem.

No fim de alguns anos, era conhecido como o Tempo, mas a velhice fez com ele o que faz com os relógios. Já não fornecia indicações precisas, e causava grandes perturbações no horário das pessoas.

Tentaram removê-lo dali, e o Tempo não cedeu. A igreja foi demolida para dar espaço à nova rua. O Tempo continuou plantado no centro da pista, das sete às doze, sem que os guardas de trânsito conseguissem afastá-lo com boas ou rudes maneiras. Era evitado pelos motoristas e foi proclamado estátua matinal, atração da cidade.
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O TRABALHADOR INJUSTIÇADO

Papai Noel foi contratado para distribuir brinquedos na festa de Natal dos trabalhadores. Ao ver o ministro do Trabalho, expôs-lhe a situação:

— Ministro, nossa profissão ainda não foi regulamentada. Faça alguma coisa por nós.

— Como, se você e seus colegas só trabalham alguns dias por ano?

— Perdão, mas ainda que fosse um dia apenas, é trabalho regular, e em condições desfavoráveis. Ser Papai Noel na Europa é fácil, aqui o senhor não faz ideia. Além disso, passamos o ano inteiro à espera do Natal, com capacidade ociosa.

O ministro prometeu estudar o caso, mas acabou indeferindo a petição, com fundamento em parecer da assessoria, segundo o qual Papai Noel não existe.
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OU ISTO OU AQUILO

O dono da usina, entrevistado, explicou ao repórter que a situação é grave. Há excedente de leite no país, e o consumo não dá para absorver a produção intensiva:

— Uma calamidade. Imagine o senhor que o jornal aqui do município reclama contra a poluição do rio, que está coberto por uma camada alvacenta. Não é nenhum corpo estranho não, é leite. Estão jogando leite no rio porque não têm mais onde jogar. Os bueiros estão entupidos. A população, como o senhor deve saber, é insuficiente para beber toda essa leitalhada ou comê-la em forma de queijo, requeijão, manteiga e coisinhas.

— Insuficiente? Parece que a produção de crianças ainda é maior que a produção de leite.

— Numericamente sim, mas não têm capacidade econômica para beber leite. Têm apenas boca, entende? Então nada feito. Se falta dinheiro aos pais dos garotos para adquirir o produto, ainda bem que se joga o leite fora, em vez de jogar os garotos.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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