O telefone celular de repente começou a tocar insistentemente dentro da mochila que o Bigode trazia às costas. Sem pressa, tirou-a e colocou no chão. Abriu um compartimento pequeno fechado por um zíper e pegou o aparelho que se esgoelava. Era o Paulo.
— Alô! Paulo? Sou eu. Fale...
— Bigode, por que demorou pra atender? Onde você está?
— Onde marcamos. Na porta da casa que você me passou o endereço ontem à noite. Lembra?
— Seu mentiroso. Então me diga: o que tem aí na frente dessa residência?
— A entrada...
— ...O quê?
— Na porta de acesso tem a entrada, ora bolas.
— Seu imbecil, você ainda nem saiu da cama. Se realmente está aonde te mandei, me fale o que tem na porta, junto à entrada.
— Você não explica! Só o velho senhor Capacho.
— Um velho capacho? E quem colocou essa porcaria aí?
— Isso eu não sei. O fato é que toquei duas vezes a campainha e ele apareceu.
— Não estou entendendo. Você tocou a campainha duas vezes e ele apareceu? Ele quem, apareceu?
— Meu Deus, Paulo, o seu Capacho. De quem estamos falando?
— Bigode, o capacho não está no chão?
— Não, o seu Capacho está em pé, na minha frente com um copo de café numa das mãos e um pedaço de pão com manteiga na outra. É um senhor simpático de idade bastante avançada. Foi ele que veio atender a campainha.
— Um... Um senhor?
— Em carne e osso. É a ele que me refiro desde o começo da nossa conversa.
— Pastel. Você é um pastel.
— Ah! Bem lembrado. O Pastel. Está quase chegando. Você tirou as palavras da minha boca.
— Quem está quase chegando?
— O Pastel. E, de lambuja, trazendo um ajudante.
— Bigode, pelo amor de Deus, que pastel, que ajudante?
— Pastel é meu vizinho, seu bocó e está vindo para cá com outro amigo nosso, que mora no mesmo bairro. O nome dele é Bolinho de Carne.
— Como? Bolinho de carne?
— Isso. Um ajudante porreta. Sempre que o serviço aperta costumo convocar os dois. Assim como você lembrou de mim e me chamou... Fiz o mesmo com Pastel e Bolinho. Eles vão nos dar uma mãozinha na retirada dos cacarecos.
— Bigode, seu espertinho de uma figa. Entra logo nessa droga de casa e comece a desmontar os móveis.
— Tenho que esperar pelo Pastel e pelo...
— ...Entre logo e deixe de palhaçadas. Estou chegando aí com o caminhão em menos de meia hora. Nesse tempo quero as tranqueiras todas desmontadas. Com ou sem esse pastel ou bolinho de carne.
— Está bem, está bem, você é quem manda. Agora fale com o senhor Capacho.
— Não quero...
Apesar do contra, Bigode passou o celular para o ancião.
— Bom dia, meu amigo. Com quem falo?
— Paulo. Meu nome é Paulo. E o senhor?
— Eu sou o Capacho.
— O senhor ligou para meu patrão ontem a tarde pedindo um caminhão a frete?
— Positivo. Liguei sim.
— Seu nome é realmente Capacho?
— Na verdade, José Capacho da Silva Oliveira. Capacho para os amigos.
— Desculpe. Nunca antes de hoje havia falado com alguém que tivesse um nome tão...
— ...Tão...?
— ...Tão fora do comum, excêntrico...
— Agradeço seus elogios. Geralmente as pessoas acham estrambótico.
— Que diabo vem a ser isso?
— Extravagante.
— Concordo plenamente.
— Obrigado. Bem, voltando ao nosso caso, quanto tempo o senhor acha que levará para desmontar todos os meus móveis e acomodar no seu caminhãozinho?
— Caminhão. Eu tenho um caminhão. Pois bem. Vai depender aí do Bigode que está ao seu lado.
Risos.
— Ele me parece um bom rapaz. Só acho que sozinho não conseguirá. Tenho muita tranqueira. Sabe como é: velho adora coisas antigas.
— Não se preocupe seu Tapete. Vamos dar conta do recado.
— Perdão, seu Paulo. Não é tapete, é Capacho.
— Mil desculpas. Cabeça cheia de preocupações dá nisso…
— Eu compreendo. Deixa perguntar uma coisa, seu Paulo. Não é mais viável aguardarmos a sua chegada com seu caminhãozinho e a dos dois rapazes?
Paulo começou a dar sinais de que a conversa não lhe agradava nem um pouco, quando o senhorzinho, com certa insistência, passou a se referir ao seu veículo como caminhãozinho. Precisava dar o troco.
— Meu caminhão não é caminhãozinho. Eu tenho um caminhão. Mas a que rapazes o senhor se refere?
— Aos que seu amigo aqui está esperando. Só um minuto. Seu Bigode, como é mesmo o nome dos ajudantes?
— Pastel e Bolinho de Carne.
Novos risos.
— Pastel e Bolinho de Carne.
— Macacos me mordam, seu Limpa Solas. Eu...
Nessa hora, o sujeito ao ser chamado de Limpa Solas se abalou da base ao cimo, deixando que a cólera o dominasse completamente. Paulo finalmente se vingara do coroa.
— Seu Paulo, por favor. Não gosto de brincadeiras, principalmente com meu nome. Capacho. Capacho. Será que é tão difícil? Tome. Já me aborreci. Fale com seu amigo. Passe bem.
— Fala, mano!
— Imbecil. Tinha que dar o telefone para o tal do Carapátio?
— Paulo, não é Carapátio, é Capacho. Capacho.
Ouvindo essa balela do outro ter lhe alcunhado de Carapátio, o velhote perdeu a esportiva e as estribeiras, de uma só vez. Tomou o telefone do Bigode e explodiu:
— Seu... Seu Paulo, o senhor vá sacanear a sua mãe. Carapátio uma ova. Fui claro? Além de tapete, limpa solas e não sei mais o quê, tem a cachimônia de me comparar ao navio que deu socorro ao Titanic? Vá a @#$#@&%. E de barquinho, que é para chegar mais rápido. Outro detalhe: não é Carapátio, é Carpathio, com “th”.
Paulo ao invés de tentar contornar a situação, já que havia tirado o velho do sério, resolveu continuar com a provocação:
— O senhor deveria é ficar agradecido e lisonjeado. O apelido que lhe arranjei, sem querer, em nenhum momento veio denegrir a sua imagem de cidadão de bem. Como o prezado lembrou aí, Carpathio, com "th", foi o nome de uma embarcação que salvou muitas vidas num dos desastres mais famosos da história. Além de não ter afundado, o que é mais importante.
— Pois fique sabendo que vou afundar a mão na sua fuça tão logo chegue aqui com seu caminhãozinho. Aliás, depois dessa conversa fiada, não vai ter mais mudança. Agora mesmo sairei para contratar outro pessoal. Seu Paulo, passe muito bem... Ou mal.
— Por favor, tenha calma. Vamos esperar então pelo Pastel e o Bolinho...
— Não vamos esperar ninguém. E quer saber? Comerei esses dois assim que pintarem na área... E o senhor e o seu caminhãozinho de lambuja, como sobremesa. Para terminar nosso papo, assim que acabar de tomar meu café palitarei os dentes com o seu comparsa aqui, o Bigode.
Temendo a ira da criatura que parecia atabalhoada e completamente fora de si, Bigode não esperou para ouvir o final da conversação, àquela altura completamente fora de esquadro. Tratou de passar a mão na mochila e dar no pé. Teve sorte. Num ímpeto de raiva, seu Capacho atirou o telefone contra sua cabeça. Não acertou. O velho, ensandecido, e soltando fogo pelas ventas errou a pontaria.
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Como matar sua mulher sem deixar vestígios. SP: Ed. Sucesso, 2012. Livro enviado pelo autor.
Aparecido Raimundo de Souza. Como matar sua mulher sem deixar vestígios. SP: Ed. Sucesso, 2012. Livro enviado pelo autor.
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