sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Rubem Braga (O padeiro)

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um “lockout”, greve dos patrões que suspenderam o trabalho noturno. Acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão na porta do apartamento ele apertava a campainha, mas para não incomodar os moradores, avisava gritando: - Não é ninguém, é o padeiro! Interroguei-o  uma vez: – Como tivera a ideia de gritar aquilo? "Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e  ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era, e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”.  Assim ficara sabendo que não era ninguém.

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina. como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar, e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre - não é ninguém, é o padeiro!"

E assobiava pelas escadas.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

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