quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Mia Couto (Fosforescências)

Dona Amarguinha era tão magra que só lhe servia roupa de luto. Viúva, não se retirava da penumbra da loja que lhe restara do casamento. Detrás do balcão, quase nem se percebia seu vulto. E era como se ela se tivesse antepassado, descriatura (renegada). As pessoas entravam naquele lugar sombrio com o respeito de quem penetra num local de culto.

A cantina ficava em meio da praça — a vila por ali desfilava. Passavam as mulheres matinais, os velhos poeirentos, as moças em idade divorciadoura. A todos ela espreitava da obscuridade. Como se a sombra lhe desse uma ilha intransponível. E daquele abrigo ela assistisse ao proceder do tempo.

Também eu passava por ali regressado de minhas aulas noturnas. A mim ela me repetia a sempre igual pergunta: “Se havia passado no cemitério.” E sempre eu apressava uma resposta:

—Sim, passei.

—Não viu fosforescências?

Fosforescências? Sim, fogos-fátuos, chamas sem labareda por dentro. Emanavam das profundezas, cinzas luzentes pairando no lugar dos mortos. O que produzia tais súbitas claridades eram pirilampejos das almas, os fosfogênicos falecidos virando de posição. Carecemos de explicar o mundo quando tememos os acontecimentos. Mas Dona Amarguinha nem precisava de explicação. A bem dizer, ela só falava depois da lágrima. Apenas usava de palavra depois de, nos recantos dos olhos, lhe surgir uma aguinha trêmula.

—Viu ou não viu?

E eu que sim, que tinha visto luzinhas se entrelinharem sobre as campas.

— Sabe o que é? É o sacana do meu falecido.

A razão das fosforescências era o seu marido Naftal em sem vergonhices. Já em vida quando fazia amor com ela se acendiam aquelas luzes na obscuridade.

— Aquilo é o sacana na brincadeira com outras.

— Com outras?

— Sim, com falecidas.

Seguiam-se impropérios, a velha desfilava as palavras. Que ele se atolasse nos pântanos do Inferno, malandro do homem que lhe prometera a mais bela das promessas, juramento mais cheio nenhum marido pode encomendar: que um dia ele a levaria a passear onde só as nuvens conseguem alcançar.

Imitava o falecido, em tom jocoso: “Queixa-se, mulher, que eu nunca a levo a passear? Pois eu lhe mostrarei caminhos que nem ninguém sonhou.” Lembrando se, ela ria com a mesma amargura que exibia em seu nome. E apontava sem olhar, dedos cegos indicando as alturas:

— Além de lá, nas nuvens.

Certa noite me decidi ir ter com ela, pesando em mim a mentira. Queria confessar que tinha faltado à verdade, que eu jamais passara pelo cemitério. Quando cheguei à cantina da viúva deparei com um ruidoso ajuntamento. Se encrespavam ali os burburinhos. Os rostos eram de ocorrência. Inquiri, ansioso, a razão da multidão. As vozes ziguezagueavam, em confuso enredo. Resumindo e não concluindo: Dona Amarguinha tinha sido levada, em emergência, a saúde dela já em mal estado. A velha estava desfalecida? Nem tanto, porque seus olhos rebrilhavam no rosto magro enquanto chamava pelo defunto marido:

— Naftal, ó Naftal, não vás.

É que ela estendia os braços para o vazio a pontos de fazer medo. Que a loucura a ela chegara, já se sabia. Mas a pontos daqueles acessos, isso era novidade. E aquilo, quem sabe, podia ser doença de contagiar os próprios mortos e deixar a vila atreita a visitações das almas. Levassem, sim, a desordenada velha e lhe dessem uma guarida para a sua mente vadia.

Aos poucos todos se retiraram. A bisbilhotice é como o gafanhoto: só desanda quando não resta mais folha para roer. A vizinhança se foi, deixando um descampado vazio, nunca o pátio da cantina parecera tão imenso a meus olhos. Subi a escadaria empurrado por dolorosa estranheza. A tristeza me doía como se fora uma doença caranguejando em meus ossos.

Entrei no quarto de Amarguinha. A meus olhos, a penumbra se foi desnudando. A primeira coisa que eu vi: uma flor abandonada sobre a cômoda. E depois, como que um baque em meu entendimento: da cama desalinhada exalavam ainda fosforescências. Como se Naftal e sua esposa ainda cumprissem conjugalidades, seus corpos inventando eternidades.

Me sentei no leito e me quedei frente a um espelho tão idoso que nele me revi com meu rosto de menino. Alisei a dobra do lençol: todo o gesto era inútil como travesseiro que se desse a um morto. Repente, na almofada a mancha me despertou. Sangue? Não, eram marcas de batom. Aquilo muito me espantou: a viúva enfeitara os lábios, enchera de vida seu rosto.

E aconteceu conforme meus dedos roçavam a fronha: a almofada se foi desfazendo. Do rompido irrompia um algodãozinho miúdo que depois foi crescendo e se tornou bastante infinito como se ansiasse habitar os além céus. Abri a janela e aqueles flocos brancos foram subindo, condecorando os céus com as mais luzentes nuvens que jamais por ali esvoaram.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

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