quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) IX

AMOR E LÁGRIMAS

(Oferecida ao amigo e colega Manoel Bernardino Bolivar)

Se fosse possível na minha alma
Amanhecer um dia da ventura,
Corado por um beijo de donzela
Ao despontar d’aurora...

Se, Anjo de salvação mandado ao mísero,
Sorrindo, pelo céu jurasse a bela
Fazer-me cada vez por novos beijos
Mais rubra a cor do dia...

Se fiel companheira em toda parte
Quisesse me seguir, presa comigo,
Como um raio celeste preso a um astro
A iluminar-lhe o curso...

Se a visse, desdenhosa a mil tesouros,
Só por ter-me, deixá-los e contente
A gabar-me o sabor do pão grosseiro
Que me alimenta a vida...

Não a crera; e talvez que até julgasse
Tantas provas de amor atroz perfídia,
Se amor me não brilhasse nos seus olhos
No centro de uma lágrima.

Amor é fogo; o coração que ama
Todo nas suas chamas se evapora,
No rosto se condensa, e chega aos olhos
Em água convertido.

Que é um riso? — Um prazer. Prisão estreita
De duas almas? — Simpatia apenas:
E os abraços e beijos? — Muitas vezes
Sustento de lascívia.

Tudo isso diz amor; mas quando? — Quando,
Filho de um doce afeto que se apura
Nos cadinhos da dor, é batizado,
Num batismo de prantos.

É belo ver-se uns olhos cintilantes,
Acesos em vulcões de fogo ignoto,
A dardejar faíscas invisíveis
Que os corações abrasam:

É belo ver-se um rosto nacarado
No carmim do prazer: é belo ver-se
Partir fino coral de rubros lábios
Um sim d’alma saído:

Mas em rostos assim amor não fala;
E, se fala, as mais vezes diz mentiras;
E este — sim — que tomamos por verdade
É escárnio do crente.

Quereis vê-lo sincero? Observai-o
N’açucena de um rosto desmaiado,
Entre os lírios de uns lábios que roxeiam
Suspiros de agonia:

Nuns olhos, cuja luz crepusculante,
Entre a neve das lágrimas, pareça
Revérbero da lâmpada mortiça
Do templo da saudade.

Aí podeis lhe crer o que disser-vos,
Podeis segui-lo sem temer um crime;
Que amor, se o pranto lhe borrifa as asas,
Seu voo ao céu dirige
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NO ÁLBUM DUMA SENHORA

Meu nome aqui deixara solitário
Escrito nessa cor;
Com que desde nascido as faixas d’alma
Tingiu-me o dissabor;

Meu nome aqui deixara solitário
Em traço negro incerto,
Qual friso do buril da desventura
Em claro plano aberto;

A não temer que alguém, que não soubesse
O que este nome diz,
Ao vê-lo neste livro me insultasse
Chamando-me feliz.

Saiba, pois, quem o ler, que de uma Virgem
No livro afortunado
Seu nome escuro, como seu destino,
Escreve um desgraçado!

Sobre ele verta a Virgem uma lágrima
Do seu pranto celeste,
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.

Sim, ó Virgem, do pranto de teus olhos,
Concede, sim, concede
Uma lágrima triste ao pobre nome
Que lágrimas só pede!

De teus olhos quisera uma centelha
Um peito do vulcão;
Ao contrário, porém, só pede pranto
Um morto coração!

O sol ilumina, a gala ofende
Ao solo mortuário:
Só sobressaem os cristais do pranto
Dos mortos no sudário.

Eia, pois, cair deixa neste nome
O teu pranto celeste;
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.
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O QUE SÃO MEUS VERSOS

Se é vate quem acesa a fantasia
Tem de divina luz na chama eterna;
Se é vate quem do mundo o movimento
C’o movimento das canções governa;

Se é vate quem tem n’alma sempre abertas
Doces, límpidas fontes de ternura,
Veladas por amor, onde se miram
As faces da querida formosura;

Se é vate quem dos povos, quando fala,
As paixões vivifica, excita o pasmo,
E da glória recebe sobre a arena
As palmas, que lhe of’rece o entusiasmo;

Eu triste, cujo fraco pensamento
Do desgosto gelou fatal quebranto;
Que, de tanto gemer desfalecido,
Nem sequer movo os ecos com meu canto;

Eu triste, que só tenho abertas n’alma
Envenenadas fontes d’agonia,
Malditas por amor, a quem nem sombra
De amiga formosura o céu confia;

Eu triste, que, dos homens desprezado,
Só entregue a meu mal, quase em delírio,
Ator no palco estreito da desgraça,
Só espero a coroa do martírio;

Vate não sou, mortais; bem o conheço;
Meus versos, pela dor só inspirados, —
Nem são versos — menti — são ais sentidos,
Às vezes, sem querer, d’alma exalados;

São fel, que o coração verte em golfadas
Por contínuas angústias comprimido;
São pedaços das nuvens, que m’encobrem
Do horizonte da vida o sol querido;

São anéis da cadeia, qu’arrojou-me
Aos pulsos a desgraça, ímpia, sanhuda;
São gotas do veneno corrosivo,
Que em pranto pelos olhos me transuda.

Seca de fé, minha alma os lança ao mundo,
Do caminho que levam descuidada,
Qual, ludibrio do vento, as secas folhas
Solta a esmo no ar planta mirrada.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas. Ministério Da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional

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