DA JANELA do no meu loft, no décimo andar, a ebulição que escancara os aposentos da moça, que mora na torre frontispicial colada ao meu prédio, um pavimento abaixo, parece ser maior do que aparenta. Talvez em face da distância mínima que nos separa. Um vão quase contíguo. Dona de uma juventude próspera, a moradora chegada recentemente é de deixar qualquer marmanjo à beira de um ataque de nervos. E é assim que me encontro agora. Fora de mim, apatetado, boquiaberto, desde o instante em que a vi transitando através do postigo da sua quitinete em trajes menores.
Meus olhos, esbugalhados e levados pelas tonturas da imaginação, me ajudam a viajar bem longe da terra. Loucura? Sim, pura loucura! Nada mais que isso. Quando ela não está, a sua ausência é sentida em toda parte, nos mínimos detalhes, notadamente dentro de meu coração batendo em desabalados descompassos. Fico me perguntando, como uma estranha com a qual nunca tive nenhum contato, nem troquei sequer um olá, um bom dia, pode fazer tanta diferença ou melhor, como a sua deserção se redundou esquisitamente forte e pujante quando não se afigura por perto?
Desde o dia em que a vi, pela primeira vez, coisa de três semanas, venho me sentindo tomado por uma sensação diferente. Algo ilógico e delirante que mexeu com a minha estrutura, e a faz fraquejar, desde a sua base. Na verdade, invadiu a minha cabeça, a ponto de deixar o meu espírito em franco estado de abnormidade*. Descobri para minha desventura que uma infinidade de pequenos lugares inacessíveis passou a habitar o meu “eu” interior, e que somente os vejo preenchidos, quando ela chega da rua, por volta das oito da noite e inunda meus devaneios e desconfortos com a sua estada marcante e inimitável.
Nessa hora, engano meus propósitos, provoco espasmos, tapeteando a insensatez diante da felicidade que ela irradia. É a partir daí, na ânsia desinquieta da minha carne fraca, que o meu autocontrole sossegado se desmancha num avesso contraditório e se desfaz apressado. Ao vê-la se livrar dos sapatos de saltos (num minuto atrás eles quebravam o tranquilo do corredor), todo meu âmago se atiça em clima de festa. A princesa entra, atira os pisantes e as meias num canto e vai direto para o banheiro. Acende a luz. Puxa a descarga.
Reaparece, matizada, agora, por uma claridade que não se apaga. No quarto, ao lado da King Size espaçosa, torna luminosa uma lâmpada fraca de um abajur e, então, se despe. Matreira, de regresso ao banheiro, traja apenas calcinha e sutiã. Ao vê-la assim, quase sem nada, deliciosa e exposta, calo meus afogueamentos. Abafo meus ímpetos. Ou pelo menos tento.
Não houvesse o vão do fosso existente entre o meu apê e o dela (embora as residências se posicionem quase uma dentro da outra), me atiraria de cabeça, num voo cego e aterrissaria no chão de sua varanda, despedaçado, esfacelado, todavia feliz e realizado por estar ao seu lado. Um Ícaro dos tempos modernos que não aprendeu a usar as escadas e os elevadores.
Enquanto ela se banha, os traços de suas expressões, em meio à água e a espuma, flutuam na minha imaginação. Ao tempo em que passam como um filme, andejo em quimeras levado não só pela intimidade que se estreita, igualmente, por uma orexia* descomedida em devorar, com sofreguidão, cada centímetro da sua venustidade* assediado por uma pretensão candente, e pior, atacado pelas vilanias de todos os pecados aflorando meus nervos em frangalhos.
Enfim, quando ela se devolve ao quarto e atravessa a minha visão, agora nua, a toalha presa aos cabelos, propositalmente a graciosa estanca por breves segundos, diante da abertura do alpendre. Eu, enfeitiçado, enlouqueço. Torno a sair do meu raio físico. Vou, à mil, ao topo do mundo, e volto saltitante, os nervos pandarecados, querendo escapulir por todos os poros da epiderme.
Meu Deus! Tenho plena consciência de que essas originalidades infantis da minha parte, estão se transformando, pouco a pouco, em anomalias. Entre um anélito* e outro, me pilho tolhido por estranhas sensações de loucura, onde afogos e suplícios cheios de constelações brilham incandescentes diante de meu rosto espicaçado.
Não evito a tortura de me imaginar posicionado com ela, sobre os lençóis, passeando pelos desvãos dos seus recantos perfeitos, devagar e também apressado. De repente, ela se entrega todinha para mim, se acantoa num frêmito de entrega total. Enrodilhada as pernas ao redor de minha cintura, eu a beijo com ternura e carinho.
Divido os minutos que o relógio transforma em comenos eternos. Estamos por fim, ofegantes, os suores embevecidos em uma quentura abrasante, tentando encontrar um ritmo constante no meio de nossos movimentos desvairados. Nessa demência, enquanto confesso impulsos urgentes e desatinos extravagantes, uma sensação de paz toma conta da minha vontade, e me faz sair do real.
Apesar de toda essa magia, no final, tudo não passa de uma versão fantasiosa criada pela neurastenia que se forma em mim e, então, me flagro solitário, vencido, aniquilado, atrelado a um inferno inóspito.
Deprimido, humilhado, esfacelado, os bofes gangrenados a saltar pela boca, as vistas mortas, sem vida, sem cor, envoltas em nuvens que se esgarçam, me petrifico, rés ao chão... meu aspecto, no geral, é o de um desenterrado. Apesar de tudo isso, sigo em frente. Oculto nos bastidores, na coxia que acessa meu palco de sonhos irrefreados, envolto pela cortina, sutilmente eu controlo seus horários. Na retorta de acuradas observações, analiso seus movimentos. Idas e vindas, chegadas e saídas. Sou o Sherlock Holmes diante não de um estudo em vermelho, porém, de uma relação literalmente apedeuta.
Por conta dessa sofomania* incurável, sei dizer com precisão britânica a que horas ela se levanta. O instante em que toma o chuveiro matinal, bem quando se veste e se embeleza para sair para o trabalho. O barulho das vasilhas de café na cozinha, deixa no ar um cheiro forte, misturado a um odor mais robusto e vigoroso: o de sua feminilidade acima de qualquer suspeita. Estou de plantão, sempre, a visão enxuta grudada na sua realeza seguida de um apetite enorme de envolvê-la no meu estado doente-ebulitivo.
Dessa forma inverossímil, bem sei, ela vem me desgastando. Aos poucos, me consumindo. Sem nada seguro para me agarrar, procuro reescrever uma estratégia. Em paralelo, busco me recarregar desopressando os queixumes que me envolvem na doce miragem da sua silhueta ímpar. As convulsões perdidas, contudo, persistem seguir no vácuo, à procura de não sei o quê. Os amigos que me visitam dizem que emagreci. É fato? Sim é real!
A minha transformação para um quadro cadavérico cada vez mais se deprime e se acentua. Por certo o meu desleixo comigo mesmo está patente e cada vez mais acessível. Quase não me alimento. Estou deveras fraco. Me sinto desmantelado, fora do normal, abatido, cansado, deprimido. Novamente vem a noite. As oito em ponto, ela restaura os meus medos, quebra o silêncio sisudo do meu santo sepulcro, e reembolsa as minhas exprobrações, reativa as minhas tantas rebordosas e quantas outras descomposturas.
Uma transformação visceral emana das espiadelas via "voyeurismo" as quais me entrego. Novamente o espetáculo recomeça e se amiúda. Espectador de um dramalhão infindo, acalmo, tranquilizo, pressuroso. Meu cansaço depreciativo deve se juntar a dezenas de tresloucados (ao lado) e acima do meu andar, imersos numa plateia igualmente vastíssima. Assim como eu, inquilinos de outras unidades sofrem do mesmo mal desse amor doido e mentecapto, néscio e disturbado.
Pela fenda entreaberta do náilon do cortinado, eu sigo quieto, calado, espiando. Espreito longamente. Demoradamente, sorvendo cada detalhe. Ela liga a tevê. Não perde a novela das nove horas. Todo santo dia... todo santo dia é sempre uma reprise. A combinação prodigiosa de sua presença (aliada a tantos outros movimentos, toques imperceptíveis, celular a todo vapor, torneira se abrindo, o ruído produzido pela porta do guarda roupas, lembra uma gata no cio, o som do micro-ondas, da lavadora e secadora de loucas, da máquina de lavar roupas).
Meu Deus do Céu! Tudo concorre desordenado para uma repetição que se renova sem cair na rotina enervante da mesmice. É no enjoo do monótono que surge algo alcandorado* permitindo que portas aldravadas se escancarem para prazeres ainda não experimentados. Concluo, sem mais delongas, ela, a minha vizinha espalhafatosa é, sem dúvida alguma, o meridiano ideal que atravessa meu peito e atinge meu ponto mais frágil. A matriz que me renova a manhã para um porvir de florestas e corais tecidos no sobrevoo de uma Esperança longínqua que a bem da realidade, apesar dos pesares, sei, de antemão, nunca chegará ser minha.
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*Vocabulário (Dicionário Eletrônico Houaiss)
Abnormidade = anormalidade.
Alcandorado =situado em ponto alto, elevado.
Anélito = grande aspiração, desejo ardente.
Orexia = desejo, apetite.
Sofomania =confiança exagerada e extravagante na própria sabedoria.
Venustidade = atributo do que é venusto, de grande beleza, graça, elegância; formosura.
Meus olhos, esbugalhados e levados pelas tonturas da imaginação, me ajudam a viajar bem longe da terra. Loucura? Sim, pura loucura! Nada mais que isso. Quando ela não está, a sua ausência é sentida em toda parte, nos mínimos detalhes, notadamente dentro de meu coração batendo em desabalados descompassos. Fico me perguntando, como uma estranha com a qual nunca tive nenhum contato, nem troquei sequer um olá, um bom dia, pode fazer tanta diferença ou melhor, como a sua deserção se redundou esquisitamente forte e pujante quando não se afigura por perto?
Desde o dia em que a vi, pela primeira vez, coisa de três semanas, venho me sentindo tomado por uma sensação diferente. Algo ilógico e delirante que mexeu com a minha estrutura, e a faz fraquejar, desde a sua base. Na verdade, invadiu a minha cabeça, a ponto de deixar o meu espírito em franco estado de abnormidade*. Descobri para minha desventura que uma infinidade de pequenos lugares inacessíveis passou a habitar o meu “eu” interior, e que somente os vejo preenchidos, quando ela chega da rua, por volta das oito da noite e inunda meus devaneios e desconfortos com a sua estada marcante e inimitável.
Nessa hora, engano meus propósitos, provoco espasmos, tapeteando a insensatez diante da felicidade que ela irradia. É a partir daí, na ânsia desinquieta da minha carne fraca, que o meu autocontrole sossegado se desmancha num avesso contraditório e se desfaz apressado. Ao vê-la se livrar dos sapatos de saltos (num minuto atrás eles quebravam o tranquilo do corredor), todo meu âmago se atiça em clima de festa. A princesa entra, atira os pisantes e as meias num canto e vai direto para o banheiro. Acende a luz. Puxa a descarga.
Reaparece, matizada, agora, por uma claridade que não se apaga. No quarto, ao lado da King Size espaçosa, torna luminosa uma lâmpada fraca de um abajur e, então, se despe. Matreira, de regresso ao banheiro, traja apenas calcinha e sutiã. Ao vê-la assim, quase sem nada, deliciosa e exposta, calo meus afogueamentos. Abafo meus ímpetos. Ou pelo menos tento.
Não houvesse o vão do fosso existente entre o meu apê e o dela (embora as residências se posicionem quase uma dentro da outra), me atiraria de cabeça, num voo cego e aterrissaria no chão de sua varanda, despedaçado, esfacelado, todavia feliz e realizado por estar ao seu lado. Um Ícaro dos tempos modernos que não aprendeu a usar as escadas e os elevadores.
Enquanto ela se banha, os traços de suas expressões, em meio à água e a espuma, flutuam na minha imaginação. Ao tempo em que passam como um filme, andejo em quimeras levado não só pela intimidade que se estreita, igualmente, por uma orexia* descomedida em devorar, com sofreguidão, cada centímetro da sua venustidade* assediado por uma pretensão candente, e pior, atacado pelas vilanias de todos os pecados aflorando meus nervos em frangalhos.
Enfim, quando ela se devolve ao quarto e atravessa a minha visão, agora nua, a toalha presa aos cabelos, propositalmente a graciosa estanca por breves segundos, diante da abertura do alpendre. Eu, enfeitiçado, enlouqueço. Torno a sair do meu raio físico. Vou, à mil, ao topo do mundo, e volto saltitante, os nervos pandarecados, querendo escapulir por todos os poros da epiderme.
Meu Deus! Tenho plena consciência de que essas originalidades infantis da minha parte, estão se transformando, pouco a pouco, em anomalias. Entre um anélito* e outro, me pilho tolhido por estranhas sensações de loucura, onde afogos e suplícios cheios de constelações brilham incandescentes diante de meu rosto espicaçado.
Não evito a tortura de me imaginar posicionado com ela, sobre os lençóis, passeando pelos desvãos dos seus recantos perfeitos, devagar e também apressado. De repente, ela se entrega todinha para mim, se acantoa num frêmito de entrega total. Enrodilhada as pernas ao redor de minha cintura, eu a beijo com ternura e carinho.
Divido os minutos que o relógio transforma em comenos eternos. Estamos por fim, ofegantes, os suores embevecidos em uma quentura abrasante, tentando encontrar um ritmo constante no meio de nossos movimentos desvairados. Nessa demência, enquanto confesso impulsos urgentes e desatinos extravagantes, uma sensação de paz toma conta da minha vontade, e me faz sair do real.
Apesar de toda essa magia, no final, tudo não passa de uma versão fantasiosa criada pela neurastenia que se forma em mim e, então, me flagro solitário, vencido, aniquilado, atrelado a um inferno inóspito.
Deprimido, humilhado, esfacelado, os bofes gangrenados a saltar pela boca, as vistas mortas, sem vida, sem cor, envoltas em nuvens que se esgarçam, me petrifico, rés ao chão... meu aspecto, no geral, é o de um desenterrado. Apesar de tudo isso, sigo em frente. Oculto nos bastidores, na coxia que acessa meu palco de sonhos irrefreados, envolto pela cortina, sutilmente eu controlo seus horários. Na retorta de acuradas observações, analiso seus movimentos. Idas e vindas, chegadas e saídas. Sou o Sherlock Holmes diante não de um estudo em vermelho, porém, de uma relação literalmente apedeuta.
Por conta dessa sofomania* incurável, sei dizer com precisão britânica a que horas ela se levanta. O instante em que toma o chuveiro matinal, bem quando se veste e se embeleza para sair para o trabalho. O barulho das vasilhas de café na cozinha, deixa no ar um cheiro forte, misturado a um odor mais robusto e vigoroso: o de sua feminilidade acima de qualquer suspeita. Estou de plantão, sempre, a visão enxuta grudada na sua realeza seguida de um apetite enorme de envolvê-la no meu estado doente-ebulitivo.
Dessa forma inverossímil, bem sei, ela vem me desgastando. Aos poucos, me consumindo. Sem nada seguro para me agarrar, procuro reescrever uma estratégia. Em paralelo, busco me recarregar desopressando os queixumes que me envolvem na doce miragem da sua silhueta ímpar. As convulsões perdidas, contudo, persistem seguir no vácuo, à procura de não sei o quê. Os amigos que me visitam dizem que emagreci. É fato? Sim é real!
A minha transformação para um quadro cadavérico cada vez mais se deprime e se acentua. Por certo o meu desleixo comigo mesmo está patente e cada vez mais acessível. Quase não me alimento. Estou deveras fraco. Me sinto desmantelado, fora do normal, abatido, cansado, deprimido. Novamente vem a noite. As oito em ponto, ela restaura os meus medos, quebra o silêncio sisudo do meu santo sepulcro, e reembolsa as minhas exprobrações, reativa as minhas tantas rebordosas e quantas outras descomposturas.
Uma transformação visceral emana das espiadelas via "voyeurismo" as quais me entrego. Novamente o espetáculo recomeça e se amiúda. Espectador de um dramalhão infindo, acalmo, tranquilizo, pressuroso. Meu cansaço depreciativo deve se juntar a dezenas de tresloucados (ao lado) e acima do meu andar, imersos numa plateia igualmente vastíssima. Assim como eu, inquilinos de outras unidades sofrem do mesmo mal desse amor doido e mentecapto, néscio e disturbado.
Pela fenda entreaberta do náilon do cortinado, eu sigo quieto, calado, espiando. Espreito longamente. Demoradamente, sorvendo cada detalhe. Ela liga a tevê. Não perde a novela das nove horas. Todo santo dia... todo santo dia é sempre uma reprise. A combinação prodigiosa de sua presença (aliada a tantos outros movimentos, toques imperceptíveis, celular a todo vapor, torneira se abrindo, o ruído produzido pela porta do guarda roupas, lembra uma gata no cio, o som do micro-ondas, da lavadora e secadora de loucas, da máquina de lavar roupas).
Meu Deus do Céu! Tudo concorre desordenado para uma repetição que se renova sem cair na rotina enervante da mesmice. É no enjoo do monótono que surge algo alcandorado* permitindo que portas aldravadas se escancarem para prazeres ainda não experimentados. Concluo, sem mais delongas, ela, a minha vizinha espalhafatosa é, sem dúvida alguma, o meridiano ideal que atravessa meu peito e atinge meu ponto mais frágil. A matriz que me renova a manhã para um porvir de florestas e corais tecidos no sobrevoo de uma Esperança longínqua que a bem da realidade, apesar dos pesares, sei, de antemão, nunca chegará ser minha.
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*Vocabulário (Dicionário Eletrônico Houaiss)
Abnormidade = anormalidade.
Alcandorado =situado em ponto alto, elevado.
Anélito = grande aspiração, desejo ardente.
Orexia = desejo, apetite.
Sofomania =confiança exagerada e extravagante na própria sabedoria.
Venustidade = atributo do que é venusto, de grande beleza, graça, elegância; formosura.
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Texto enviado pelo autor.
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