quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Hans Christian Andersen (O Boneco de neve)


– Está tão deliciosamente frio que meu corpo até estala. – disse o Boneco de Neve – Este é o tipo de vento que sopra vida para dentro de uma pessoa. Mas como aquela coisa vermelha grande está me encarando! – Ele estava falando do Sol, que estava se pondo – Não vai conseguir me fazer piscar, e eu vou conseguir segurar todas as partes.

O Boneco de Neve tinha duas telhas triangulares em lugar dos olhos; a boca era feita com um ancinho e, portanto, tinha dentes. Ele havia sido montado em meio aos gritos alegres dos meninos, o tilintar dos sinos de trenós e o estalar de chicotes.

O Sol desceu, e a Lua cheia subiu, grande, redonda, clara e brilhando no profundo céu azul.

– Lá vem ele de novo, desta vez do lado oposto. – disse o Boneco de Neve, achando que era o Sol se exibindo novamente – Ah, eu o curei daquela mania de ficar encarando. Agora ele está brilhando lá em cima, e eu consigo enxergar a mim mesmo. Ah, se eu conseguisse me afastar daqui; gostaria tanto de poder me mexer! Se eu pudesse, iria deslizar para longe sobre o gelo, como vi os meninos fazerem, mas não entendo como. Eu nem sei correr.

– Ou, ou! – latiu o velho cão de guarda, que era um pouco rouco e não conseguia pronunciar corretamente “au, au”.

No passado, o cão tinha vivido dentro de casa, onde muitas vezes se deitou perto da lareira; sua rouquidão vinha desde essa época.

– Um dia, o Sol vai fazê-lo correr sim, e até escorrer. Eu mesmo vi, no inverno passado, quando seu antecessor escorreu, e também o antecessor dele. Ou, Ou! Todos sempre escorrem.

– Não o entendo, meu camarada. – o Boneco de Neve disse – Aquela coisa lá em cima vai me ensinar a correr? Eu vi quando ele mesmo correu, pouco tempo atrás, e agora surgiu subindo do outro lado.

– Você não sabe de nada. – o cão de guarda replicou – Mas, por outro lado, você é novo ainda, acabou de ser feito. O que você está vendo agora é a Lua, o que você viu antes era o Sol. Ele vai voltar amanhã, e provavelmente vai ensinar você a escorrer para a canaleta junto ao poço, pois acho que o tempo vai mudar. Estou sentindo aqui na perna esquerda umas pontadas que parecem facas entrando, então tenho certeza de que o tempo vai virar.

– Não consigo entender aquele sujeito, – o Boneco de Neve comentou consigo mesmo – mas tenho a impressão de que ele está falando de algo bem desagradável. Aquela coisa que estava me encarando agora há pouco, que ele chama de Sol, não é meu amigo; estou sentindo isso também.

– Ou, ou! – latiu o cão, depois deu três voltinhas e entrou no canil para dormir.

O tempo mudou mesmo. Perto do alvorecer, uma névoa espessa cobriu o país inteiro e um vento agudo soprava tão forte que parecia capaz de congelar até os ossos das pessoas. Quando o Sol raiou, porém, uma visão se tornou esplendorosa. Árvores e arbustos estavam cobertos de granizo e pareciam uma floresta de corais brancos, enquanto em todo graveto reluziam gotas congeladas de orvalho. Suas formas delicadas, que no verão ficaram escondidas pela folhagem abundante, agora estavam claramente definidas e pareciam rendas brilhantes. Um esplendor branco refulgia de cada galho. As bétulas, balançando ao vento, estavam tão cheias de vida quanto em um dia de verão, e absolutamente deslumbrantes. Onde batia sol, tudo resplandecia e faiscava como se pó de diamante tivesse sido espalhado; e o tapete de neve que cobria a terra também parecia feito de diamantes, e deles saíam inúmeros feixes de luz cintilante e ainda mais branca do que a própria neve.

– Isto é realmente lindo. – comentou uma mocinha que tinha ido ao jardim com um amigo; ambos pararam perto do Boneco de Neve e ficaram apreciando o esplendor da cena. – Nem o verão traz uma imagem tão bonita. – Ela exclamou, com olhos vivos.

– E no verão também não existem sujeitos como este aqui. – respondeu o rapaz, apontando para o Boneco de Neve. – Ele é fundamental.

A menina riu e acenou para o Boneco de Neve, e foi embora saltitando pela neve com o amigo. O chão estalou e crepitou como se ela estivesse pisando em cima de roupas engomadas.

– Quem são aqueles dois? – o Boneco de Neve perguntou ao cão de guarda. – Você está aqui há mais tempo do que eu; você os conhece?

– Claro que os conheço. – respondeu o cão. – A menina me fez carinho vezes sem conta, e o jovem já me deu muitos ossos. Eu nunca mordo aqueles dois.

– Mas o que eles são?

– São namorados. – o cão explicou. – Com o tempo, eles vão morar juntos no mesmo canil e roer o mesmo osso. Ou, ou!

– Eles são o mesmo tipo de criaturas que você e eu?

– Bem, eles pertencem ao senhor mestre. – o cão disse. – Dá pra ver como uma pessoa sabe pouco quando nasceu ontem. Vejo isso em você. Eu tenho idade e bastante experiência, conheço todo mundo naquela casa e sei que houve uma época quando não ficava aqui fora no frio, preso a uma corrente. Ou, Ou!

– O frio é delicioso. – o Boneco de Neve falou. – Mas me conte mais, conte mais. Apenas não bata a corrente desse jeito; me dá aflição quando você faz isso.

– Ou, ou! – o cão de guarda latiu. – Vou contar: antes, eles diziam que eu era uma graça de cachorrinho, e naquele tempo eu ficava em uma poltrona forrada de veludo, na casa do senhor amo, e sentava no colo da senhora; eles beijavam meu focinho e limpavam minhas patas com lenços bordados, e era “querido Ami” pra cá, “meu Ami docinho” pra lá. Só que depois eu fiquei grande demais, e eles me despacharam para a casa da criada, então passei a morar no andar de baixo. Aí de onde você está dá para ver o quarto onde eu era o mestre; sim, pois eu era, de verdade, amo e senhor da criada. O quarto era muito menor do que o de cima, mas eu ficava mais confortável, porque não era mais o tempo todo puxado e erguido pelas crianças. A comida era farta e boa, até melhor do que antes. Eu tinha uma almofada só pra mim e havia uma fornalha; uma fornalha é a melhor coisa do mundo nesta época do ano. Eu ia para baixo dela e ficava lá deitado. Ah, ainda sonho com aquela fornalha... Ou, Ou!

– Uma fornalha é algo bonito? É parecida comigo? – o Boneco de Neve quis saber.

– É o oposto de você. – e o cão passou a descrever: – É escura como um corvo, tem um pescoço comprido e puxador de metal; uma fornalha come lenha e solta fogo pela boca. Uma pessoa tem que ficar ao lado ou abaixo, para se aquecer. Aí de onde você está dá para ver a fornalha através da janela.

O Boneco de Neve olhou, e o que viu foi uma coisa polida, brilhante, com um puxador de metal na frente e brasas incandescentes na parte de baixo. Essa visão deu ao Boneco de Neve uma sensação estranha; era bem esquisito, ele não sabia o que significava nem entendia direito. No entanto, há pessoas que não são bonecos de neve e que entendem muito bem esse sentimento.

– E por que você abandonou a fornalha? – o Boneco de Neve perguntou. – Como conseguiu deixar para trás um lugar tão gostoso?

– Eu fui obrigado. – respondeu o cão de guarda. – Eles me expulsaram da casa e me acorrentaram aqui fora. Eu tinha mordido a perna do filho mais novo do senhor, porque ele havia chutado para longe o osso que eu estava roendo. “Um osso por um osso”, eu pensei. Eles ficaram zangadíssimos e desde então fico acorrentado aqui, e perdi a voz. Percebe como sou rouco? Ou, ou! Não consigo mais falar como os outros cachorros. Ou, ou! E foi assim que tudo terminou.

O Boneco de Neve, porém, não estava mais ouvindo. Ele estava com o olhar fixo no quarto da criada no andar de baixo, onde ficava a fornalha, que tinha mais ou menos a mesma altura que ele próprio, e se apoiava em quatro calços de ferro.

– Que estranhos comichões estou sentindo aqui no peito. – ele falou. – Será que devo entrar lá? É um desejo inocente, e desejos inocentes são sempre atendidos. Vou entrar no quarto e me encostar na fornalha nem que tenha que quebrar a janela.

– Não vá. Se você chegar perto da fornalha, – o cão de guarda alertou – vai derreter!

– Preciso ir. – o Boneco de Neve respondeu – Estou sofrendo com o jeito que as coisas estão.

Durante o dia inteiro, o Boneco de Neve ficou olhando através da janela. Ao entardecer, o quarto ficou ainda mais convidativo, pois da fornalha saía um brilho suave, não como o do Sol nem o da Lua; era a incandescência que vem de uma fornalha quando ela foi bem abastecida.

Quando a portinhola foi aberta, as labaredas escaparam, como costuma ocorrer com todas as fornalhas, e a luz das chamas cobriu o rosto e o peito do Boneco de Neve com um clarão avermelhado.

– Eu não suporto mais. – ele disse – Como ela fica linda quando estica a língua para fora!

A noite foi longa, mas pareceu curta ao Boneco de Neve, que passou as horas entretido com seus pensamentos e estalando de prazer com o frio. Pela manhã, a janela do quarto da criada estava coberta de gelo. As vidraças exibiam as flores de granizo mais lindas que qualquer Boneco de Neve poderia desejar, mas elas escondiam a fornalha.

O degelo não vinha e ele não enxergava nem um pedacinho da fornalha, que na imaginação dele era bela como uma linda mulher humana. A neve rangia e o vento assobiava ao redor dele; era o tipo de clima enregelante que um Boneco de Neve aprecia ao máximo. Mas ele não estava nem um pouco contente. Como poderia, afinal, estando tão apaixonado e distante?

– É uma condição terrível para um Boneco de Neve. – o cão de guarda observou – Eu mesmo já sofri disso, mas superei. Ou, ou! – ele latiu, e acrescentou: – O tempo vai mudar.

E mudou mesmo. A neve começou a derreter e, conforme o calor aumentava, o Boneco de Neve diminuía. Ele não disse nada, não reclamou, o que era sinal certeiro de estar morrendo.

Certa manhã, ele se partiu e afundou completamente. Mas esperem! Onde antes tinha estado o Boneco de Neve, havia agora, espetado no chão, algo parecido com uma vassoura. Era a estaca em volta da qual os meninos tinham construído o Boneco de Neve.

– Ah, agora eu entendi por que ele queria tanto se aproximar da fornalha! – concluiu o cão – Ora, aquilo lá, amarrado à estaca, é a escova que se usa para limpar a fornalha. O Boneco de Neve tinha uma escova de fornalha dentro do corpo, era por isso. Ou, ou!

E logo o inverno chegou ao fim. O cão de guarda continuava com seu “ou, ou”, enquanto dentro de casa as meninas cantavam:

Venha do seu lar aromático, verde tomilho,
Que já não resta nenhum empecilho.
Salgueiro, estique seus macios ramos,
Que muito contentes todos estamos.
A primavera vem com doce euforia,
E no céu voam as aves com alegria.
Chega o Sol gentil e o cuco canta,
E eu canto junto a mesma melodia.


E ninguém mais se lembrou do Boneco de Neve.

Fonte:
Hans Christian Andersen. Universo das Fábulas.

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