sábado, 14 de dezembro de 2013

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Francisco Sobreira

Francisco de Paula Sobreira Bezerra (Canindé, 1942) fez o antigo Ginasial e o Científico, incompleto, em Fortaleza. Concursado no Banco do Brasil, foi trabalhar no interior do Estado, depois fixou residência em Natal, Rio Grande do Norte. Publicou os livros de histórias curtas A Morte Trágica de Alain Delon (1972), A Noite Mágica (1979), Não Enterrarei os Meus Mortos (1980), Um Dia... os Mesmos Dias (1983), O Tempo Está Dentro de Nós (1989), Clarita (1993), Grandes Amizades (1995) e Crônica do Amor e do Ódio (1997); os romances Palavras Manchadas de Sangue (1991), A Venda Retirada (1999) e Infância do Coração (2002). Cinéfilo, foi presidente do Cineclube Tirol, de Natal, e do Clube de Cinema, de Fortaleza. Ganhador de vários prêmios literários, como o da Fundação José Augusto de Ficção, de 1879 e 1981. Também venceu o Prêmio Aurélio Pinheiro de Ficção, de 1985, e o Concurso Literário “5 Contistas Potiguares”; além do Concurso Literário Câmara Cascudo, de 1987, dentre outros. Participa de várias antologias.

A maioria das peças ficcionais de Sobreira se situa na estante das chamadas narrativas lineares, com um episódio central, poucos personagens, desfecho, narração, diálogos e alguma descrição. Em “Operação coroada de êxito”, do primeiro volume, o narrador, internado num hospital, monologa por alguns minutos, no presente, e vez ou outra “repete” falas, de pouco interesse, de seres fictícios insignificantes, ao seu redor. No entanto, a obra de título igual ao da coleção tem arquitetura mais moderna: uma notícia de jornal (a morte do cachorrinho Alain Delon), uma crônica, outras notícias menores relativas ao cão, duas entrevistas e, finalmente, a notícia do julgamento do assassino.

Seu segundo livro, A Noite Mágica, nada tem de revolucionário, de vanguardista, de inovador. Muito pelo contrário, é tecnicamente conservador. Francisco Sobreira não faz nenhuma alquimia de estilo, não cria nenhuma nova linguagem. No entanto, esta aparente acomodação não indica seja ele um simples contador de histórias.

Sendo conservador na forma, o livro de Sobreira segue a trilha da prosa de ficção de pós-1964. Perpassa por quase todas as composições um vento forte de paranoia, caudaloso na literatura urbana brasileira dos últimos anos do século XX. Histórias de medo, terror, alucinação. Medo de ser preso, de perder o emprego, de morrer de fome, medo disso e daquilo. As pessoas se sentem caçadas como bichos, ameaçadas, perseguidas. Os amigos e os parentes são delatores ou espiões a serviço do Poder. A própria sombra de cada ser humano é um dedo-duro em potencial. Esse horror kafkiano é notório em contos como “O Caçado”, “Enquanto o Diabo Esfrega o Olho”, “O Falso Álibi”, “A Promissória” e “O Caçador de Nostálgicos”. O narrador, sempre perseguido, sempre paranoico, torna-se perseguidor, delator, comparsa da polícia (representação do direito de perseguir), como em “A Voz do Vizinho”. O protagonista, sem nome explícito (“o homem que vinha denunciar”, “senhor” ou “denunciante”), comparece a uma delegacia para denunciar o seu vizinho, pelo crime de não falar, embora não seja mudo. Os outros seres fictícios são “o soldado” e “o Delegado”. Constituído basicamente de diálogos, a história tem um quê de non-sens ou, se quiserem, de parábola. E isto é visto em outras peças, como “A Fábrica”, a lembrar José J. Veiga, especialmente “A Usina Atrás do Morro”. Entretanto, a notícia da fábrica, da sua inauguração perde importância logo, para dar lugar à presença de “estranhos”, isto é, os construtores ou trabalhadores da fábrica, na cidade. E somente um personagem adquire significância: o palhaço Arrelia. Por que este e não o professor, o padeiro, o padre? Perfeito desvario, o que não deixa de ser valioso.

O absurdo é, assim, o ingrediente principal da iguaria narrada. Às vezes um absurdo que, de tão cotidiano, perde o sabor de coisa literária. Em “A Lâmina”, por exemplo. Porque ninguém é mais dono de nada. Outras vezes, a situação anormal se apresenta como se o ser fictício fosse apenas um deficiente mental, incapaz de perceber a vida e a morte ao seu redor, manejado por tentáculos tão torturantes quanto os fantasmas dos pesadelos. A realidade narrada aproxima-se, então, do sonho. Os protagonistas e os espectadores são meros joguetes nas malhas de seres todo-poderosos que inventam a vida ou o fato. Por isto, em alguns contos a presença do elemento onírico é perfeitamente perceptível ou mesmo preponderante. Os atos e as imagens se sucedem de forma incoerente, deixando o personagem simplesmente perplexo, espantado diante da estranha realidade de que tenta desesperadamente fugir. Assim, reduz à condição de ficção, de brincadeira de mau gosto, de encenação, quando muito de logro, a peça que lhe pregam. Não acredita ser possível tão absurda realidade. Por fim se convence e tenta fugir. Porém, já é tarde demais.

Essa cosmovisão, esse sentimento de inferioridade, de pequenez, essa crença nos super-homens, nos homens de milhões de dólares, nos seres biônicos, nos deuses e entes mitológicos do mundo moderno, possibilitaram a ascensão do nazi-fascismo e possibilitam, ainda, um mundo de tantos disparates.

“A Pedra” é belíssima composição e tem dimensão diferente das demais. No entanto, o mesmo clima de perseguição, de repressão, na pessoa de um pobre sertanejo virado pagador de promessas.

A linguagem nas narrativas de Sobreira é coloquial, popular, recheada de gírias e modismos (“meu chapa”, “abonado”), expressões de uso comum (“era a última coisa que faria naquele momento”; “ajuda de que tanto necessitava”; “tocava na sua ferida”; “pele de uma alvura imaculada”), observações desnecessárias (“Lá bem distante o mar glaucíssimo oferecia-se à admiração das pessoas”; “Mas os jornalistas parecem sofrer do mesmo tipo de amnésia que afeta os eleitores e os torcedores”; “É preciso que se diga que”). O narrador de “Aquele casal” (pode ser o próprio autor também) observa: “A rotina, seria dispensável dizê-lo, gruda-se na vida de todos nós de uma tal maneira...” Apesar disso, esta peça é magnífica até no desenlace. Sobreira inverteu os papéis dos personagens: o narrador, Ernani, é mero espectador, e é o único com nome explícito. Os protagonistas são “o homem” ou “o gigante” e “a mulher” ou “a mulherzinha”, ou, como se fossem um só, “o casal”. O narrador e os seres fictícios que gravitam ao seu redor falam, gritam, ouvem, veem, discutem, se relacionam. Exercem seus papéis no palco da rua. Por outro lado, os protagonistas simplesmente passam diante deles, em permanente discussão, como se o mundo além deles não existisse.

Em Sobreira a narração é minuciosa, o narrador se perde em detalhes. Há explicações em demasia: “A submissão aos maridos, naquela época, era como que uma cláusula no contrato de casamento, que as esposas tinham que cumprir, e ainda vigora na maioria das uniões existentes no Nordeste do Brasil”. A linguagem da crônica, do ensaio, da matéria jornalística não pode ser a do conto, salvo se o propósito do contista for o de imitar ou parodiar uma ou outra.

Personagens sem nenhuma influência na trama surgem de repente e logo desaparecem, como em “Lastênia”. Algumas obras parecem capítulos de romance, com vários episódios e personagens secundários que poderiam se apresentar sem nomes, como Jofre Colares, Celso Meireles, Benito, Policarpo, Hermógenes, Zeca Marcolino, de “Soldadinhos de chumbo”.

O Francisco Sobreira das histórias insólitas, das parábolas, dos contos fantásticos é, sem dúvida, muito superior ao narrador das pequenas cenas domésticas, das narrativas do cotidiano das pessoas. Entretanto, se depurasse a linguagem, se transgredisse as normas do conto, mesmo os episódios ordinários poderiam alcançar degraus mais altos da arte literária. E, ainda, se buscasse sobrepor ao objetivo um pouco de sugestivo, ou seja, se transitasse da movimentação episódica externa para a ação interior.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nenhum comentário: