domingo, 8 de dezembro de 2013

José Alcides Pinto (Cuí-Qui)

  
          — Deixe as muriçocas em paz, menino. Ninguém sabe o que é inseto, ninguém sabe o que é bicho.

            A tia não queria que matasse os insetos, afugentasse os bichos. As baratas voavam na cozinha, caíam na xícara de leite.

            — Ninguém sabe o que é inseto, ninguém sabe o que é bicho.    

            A loucura da tia, a casa em desordem, virada pelo avesso. Moscas, baratas, ratos, como donos da casa, invadindo tudo, roendo, roubando, destruindo.

            — Tia, viu minhas meias?

            — Procure, menino; procure. Não criaram asas. Estão n’algum lugar.

            — Botei dentro dos sapatos, vai ver que os ratos levaram.

            — Não levaram, menino; você precisa amar os bichos. Sua mãe não lhe queria assim.

            — Pois bem; eu quero agora as minhas meias e não encontro. Não encontro porque os diabos dos ratos são os donos da casa.

            — Diabos? Não diga isso, menino; não fale assim. O Demônio nunca porá os pés enquanto viva eu estiver. Espere um pouco, tenha paciência, e eu encontro suas meias.

            Saiu pela casa inteira, chouteando nas chinelas de couro, espiando os cantos das alcovas. Acendeu uma vela. Alumiou buracos, frinchas. Meteu a mão num velho urinol fora de uso, e um ratinho escorregou-lhe entre os dedos, e fez cuí-qui ao cair no chão. Ela apanhou o filhote e colocou no fundo do ninho. Voltou ao quarto dele e estendeu-lhe duas cédulas.

            — Compre, menino, na loja de seu Domingos, um par igualzinho ao seu.

            — Juro como um dia destes acabo com esta praga — rosnou o menino.

            — Não acaba, não. Eles são como filhos, como você. Não vê que nunca me casei? Não vê que nunca tive filhos? No dia em que você se casar, o que será feito de mim, sem eles?

            O menino sentiu o azedume das palavras, mas logo esqueceu.

            "No dia em que você se casar..."

            Sua inocência chegava a tanto. Não lhe passava pela cabeça que o sobrinho...

            — A senhora não vê que este menino...

            — Maldade. Por isso o Demônio andava solto no mundo, atentando as criaturas.

            — A senhora não vê que ele é igualzinho a uma menina?

            — É bonitinho, sim; igualzinho à mãe dele.

            As pessoas abanavam a cabeça, desoladas. Ela não compreendia, meio aluada — doença de solteirona, envelhecendo sozinha, numa casa cheia de ratos e baratas.

Fontes:
http://www.germinaliteratura.com.br/2009/colunapanaplo_jorgepieiro_out2009.htm

Imagem = http://escritasdatiaju.blogspot.com

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