domingo, 8 de dezembro de 2013

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) – N.° 3 – 12 de novembro de 1886

"Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.


Aqui está, em folhas várias,
Uma cousa que se presta
A notas e luminárias.
Aqui vai a cousa, é esta:

— Na rua Larga se aluga,
Em bom estado, uma beca. —
Parece uma simples nuga,
E é mais que uma biblioteca.

Eis aqui o que eu diria:
Há nesta beca alugada
Uma idéia que devia,
Há muito andar publicada.

Primeiramente, repare
Que esta beca não se vende
Por preço barato ou caro;
É que, alugada, mais rende.

Comprá-la, era possuí-la;
Alugá-la, é só trazê-la,
Usá-la e restituí-la,
Sem rompê-la ou descosê-la.

Não haverá neste caso
Um sintoma? Não parece
Que a beca tomada a prazo
Uma lição oferece?

Que, sem correr Seca e Meca,
Muita gente delicada,
Assim como traz a beca,
Traz a ciência alugada?

Que, sendo esta leve e pouca,
Apenas meia tigela
Não chega a entornar da boca,
E pouco pedem por ela?

Que, inda mesmo sendo um quarto
De tal tigela, e não meia,
Parece falar de fato
Quem fala de boca cheia?

E que esse pouco, bastando
A que o locatário almoce,
É tolice andar estando
Ciência de sobreposse?

Nada sei; mas ofereço
A toda a pessoa séria
Este problema de preço
E passo a outra matéria.

Escreve um correspondente
Cholera-Morbus chamado:
“Conto que proximamente,
Malvólio, estou ao teu lado.

“Aqui nesta Buenos-Aires,
Terra de belas meninas...
Que salero e que donaires!
Que formosas Argentinas!

“Aqui, por mais que me esbofe,
Levo uma vida vadia;
Esperava um rega-bofe
E vou de pança vazia.

“Quando mato uma pessoa,
Surge-me logo uma junta,
Que a declara viva e boa,
Por mais que a deixo defunta.

“Negam-me tudo; o meu ato,
O nome, e até a existência;
Chamam-me simples boato
Sem razão nem consistência,

“Aborrecido com isto,
Determinei ir-me embora
Por esse mundo de Cristo;
Estou aqui, estou lá fora.

“Aí me vou, caro mio,
Só não sei de que maneira,
Se diretamente ao Rio,
Se atravessando a fronteira.

“Ir por água é arriscado
A dar com o nariz na porta;
Se achar o porto trancado,
Eu fico de cara torta.

“Enfim, veremos... Espero
Que, de um modo ou de outro modo,
Lá, entre; e aqui te assevero
Que com pouco me acomodo.

“Saudade, tenho saudade
De outr'ora. Há mais de trinta anos
Que andei por essa cidade
Com grandes passos ufanos.

“Mudou tudo? Existe ainda
O teatro Provisório?
Onde está Lagrua, a linda
Que teve um lapso amatório?

“O gordo Tatti? O magano
Ferrari? A Charton divina?
Vive ainda o João Caetano?
Vive ainda a Ludovina?

“A Loja do Paula Brito
Mudou de dono ou de praça?
Paranhos, grave e bonito,
Vive ainda? Vive o Graça?

“Mora ainda no Rocio
Muita família? O teatro
Tem inda o mesmo feitio?
São ainda os mesmos quatro?

“Publica-se inda o elegante
Mercantil? Que faz? Que escreve
Maneco? e o Muzzio? e o brilhante
Alencar de estilo leve?

“Vou vê-los todos, e juro
Em honra aos dias passados,
Que ao meu golpe áspero e duro
Serão poupados, poupados...”

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

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