terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Moacir Costa Lopes (Estante de Livros)

MARIA DE CADA PORTO

Romance de estréia do autor, Maria de Cada Porto é uma narrativa ousada que nos conta o drama de marinheiros náufragos que, enquanto esperam a salvação ou a morte, refletem sobre sua rotina a bordo e sobre o seu passado de festas, amores e desamor em cada porto.

Trechos do Livro

Mas é bonito o mar. Experimente ficar no bico de pro-a. A gente olha a linha do horizonte e diz tolamente: daqui a pouco estarei lá. E nunca está, nunca transpõe aquela linha que brinca de correr com a gente. A maresia entra-nos pelas narinas e nos dá vontade de ser toninhas, as bailarinas do mar. O sol mergulha e vai surpreender os peixinhos lá embaixo, às vezes mostra um peixe grande correndo atrás dos pequenos para engolir. Os peixes-voadores são zombeteiros, o grande vem com fome, raiva e sede, eles pulam fora d’água e voam vinte metros, o peixe grande engole dez sardinhas por vingança. Mais adiante um lombo escuro empurra o mar para os lados e parece até uma ilha submersa que quer respirar, mas é uma baleia que vem estudando há bilhões de anos um modo de engolir peixes sem água e, não fosse a chaminé em cima da cabeça, teria que mijar muitos dias seguidos.

O sol fica com raiva, vermelho, por não ter podido ferver o mar, e essa vermelhidão cai em cima d’água e resvala, tirando faísca de luz do costado e dos vidros das vigi-as. A maruja fica enternecida, bestamente sentimental, e dá em pensar na infância frustrada e descobre que está longe dela pela velhice de tantas viagens.

Então, um dia a gente pisa no cais, e ele parece mexer-se.

– Linda manhã.

– Manhã linda. Há muito te esperava. Que viagem longa!

– Longa viagem. Regresso mais velho, mais tolo.

E vi muita coisa. Num crepúsculo manso, uma vaga de onda crescendo e se envergando em forma de vespa, vi as bolhas se inflarem com a luz do sol morto, no topo da vaga, e se arrebentarem no arrojo das águas, se partindo, e o som do estalo chegando ao ouvido da maruja embevecida como canto das sereias, de que narram lendas antigas.

E vi também, numa esquina de rua, um homem só morrer sozinho de frio e de fome e de uma chaga roendo-lhe o corpo; janelas abertas ao lado e de frente, homens e mulheres lhe observando a morte, de portas fechadas. Quando o homem deu o último suspiro, esparramando moedas de uma lata no chão, homens e mulheres fecharam suas janelas, abriram as portas e trouxeram velas acesas para cercar o corpo do homem só, que morreu sozinho. Aí rezaram... e sentiram sua morte.

– Vi mais coisa e volto mais velho.

– Vamos então.

– Vamos.

... amores explosivos que têm a existência de um foguete de junho, amor de parada de trem, amor de linha de telefone cruzada, amor de marinheiro. Depois, num cantinho de nossa memória, esse amor catalogado mas sem local, sem data e sem nome.

– Lembrarei esta tarde por muito tempo.

– Então façamos dela uma grande lembrança, meu bem, pois estamos vivendo hoje o nosso passado de amanhã.
 
POR AQUI NÃO PASSARAM REBANHOS

Sexto e mais alegórico romance de Moacir C. Lopes, Por aqui não passaram rebanhos nos convida a refletir sobre o tempo, a transitoriedade do homem e a eternidade simbolizada pela pedra.

Na linha explícita do realismo mágico, o livro sugere que, enquanto busca sua definição como ser completo, o homem é um monstro em transição. Inspirado no Parque das Sete Cidades, no Piauí, cujas antiquíssimas formações rochosas lembram seres petrificados, conta a história de um homem despojado do passado que não sabe o que o espera no futuro.

Longe da civilização e em meio a uma região inóspita, Emiliano refugia-se numa caverna onde encontra Selene, jovem bela e sedutora que o espera há três mil anos. Ele se apaixona e tenta a todo custo embarcar no tempo dela para viverem juntos para sempre. No processo, conhece o Sumé, um velho aguadeiro cujo animal carrega tonéis furados no lombo. Por onde vai pingando a água dos tonéis, nasce uma floresta onde crianças se tornam adultos em questão de minutos. Eles dividem o mesmo espaço, mas seus tempos são desencontrados.

No final, de alguma maneira Emiliano se torna eterno, mas nem ele arriscaria dizer se ficou mais próximo da redenção ou da ruína.

Trecho do Livro


Emiliano não sabe quanto tempo caminhou. Vem de longos caminhos.

Um dia uma mulher morreu nos seus braços e os habitantes de seu povoado, em bandos de caçadores, com armas e cães, o seguiram até o meio da floresta, como fera que estivesse ameaçando o mundo. E ele era apenas uma criança. Nem trazia o contágio da doença que matara aquela mulher. Arrastava consigo apenas o contágio de sua própria espécie.

Muito depois, outra mulher, jovem, morreu nos seus braços. Também esta o amava, e ofertava-lhe o corpo cada noite. Antes, ela lhe dissera: eu vou morrer. E ele falou: vamos. A minha morte será mais longa que a tua. Assim, a partir desse dia, Emiliano começou a morrer. E não sabe quando completará a sua morte.

A última lembrança foi de uma criança com quem conviveu. Não lhe dera nome, nem sabe se chegou a ser sua filha, esposa ou irmã, só recorda que ela estendia-lhe as mãos porque queria convivência. Quando ficou adulta e julgou que já conhecia o mundo, um dia, na bifurcação de dois caminhos, ela seguiu o outro.

Foi esquecendo os gestos aprendidos, porque não conseguiu mais entender seus semelhantes, se aprendeu a sorrir também não sabe. Surpreendeu-se algumas vezes de mãos estendidas mas logo as contraía, envergonhado de querer, de pedir ou mesmo de ofertar-se. Só restava caminhar.

Lembrou-se que, por onde havia passado, o mundo era todo pertencente, cada metro quadrado de chão fora medido, entre um e outro havia faixas que diziam: passe por aqui, cuidado. E cada pedaço do mundo era de alguém que criara um idioma próprio para poder comunicar-se com os rebanhos que lhe pertenciam. Se ele caminhava por um quadrilátero e sua sombra se projetava no quadrilátero vizinho, taxavam bem caro a invasão de sua sombra.

Então, do alto do promontório, contemplando o vale, disse: por aqui não passaram rebanhos. Seguirei por aqui.

Assim, como se o corpo não lhe pertencesse e fosse trapos que espalhara, as estrelas perto do seu rosto, velando seu cansaço, adormeceu sono profundo.

Fonte:
http://www.moacirclopes.com.br/obras.php

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