sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Barros Pinho (Mundica, Mulata do Cais)

Depois de mim corre um rio. Já ouvi falar nele. Chico do Gonçalo pôs os pés nessa aguazona da cor de barro vermelho. Dona Dolores vem lá dessas bandas, no cheiro da irmã casada com seu Zuza do Flor do Tempo. É visita de fins d'água. O povo da cidade às vezes se lembra dos viventes aqui do mato. A tudo ela inspeciona com o olho do ausente. O cercado, sabe Deus, como anda em pé. O engenho renova o ofício de muitos janeiros, soltando gemidos da moenda de madeira. O boi sabonete, impassível, de canga no pescoço. Na casa grande a menina cheirando a moça, de flor no cabelo, carrega no ventre o cio da terra viçosa. Dona Dolores chega a observar uma beleza de aurora nos olhinhos da cabocla, ligeiros como relâmpagos, a apanhar no canto a cabaça pra labuta da fonte.

Mundica, do Flor do Tempo, se não era esse o nome de batismo, foi apelido que lhe deram depois dos nove meses e três dias do encontro da negra Nazaré com o Polinário no baixão de dentro. O mundo da moleca nova era uma roleta. Ora circunscrito à história de sua origem, relembrada pela malícia ferina dos cambiteiros, ora, nos adjutórios domésticos, à dona Dica esposa do seu Zuza, bom de moagem e de gatilho na espera.

O rio era a obstinação da mulata. A esteira d'água do conversar fanhoso do Chico do Gonçalo não lhe saia do coco, desde o domingo da desbulha. Até dormindo, a voz lhe estava presente, como a descaroçar um sonho. O mercado da cidade, uma coisa de encher a vista. Uns homens de paletó com uns enlinhados no pescoço, donde vinha uma zoada com a história do pavão misterioso e o namoro de Toinho com Mariquinha.

Naquela manhã – o sol todo de fora.

Já de noite, na beira do rio, depois da rampa, estava o gaiola com farol na popa alumiando a força do motor. E o paredão chamado cais, com tanta mulher assim, entre nua e vestida que a gente do engenho, com esse vício de fêmea, até se espanta.

Dona Dolores se abanca e dá de espiar nos passos da Mundica, olhando fundo as intenções que formigam no juízo da donzela. É obsessão de bonina – o rio com seus mistérios e a cidade com seus segredos. Por cima da ribanceira de sonhar, os modos de dona Dolores, mulher de capital, metida num vestido de seda e brincos penduro-cai, pulseiras de miçanga, uma senhora de boas medidas. Até lembra a cigana dos tempos das vacas gordas, que passara pelo engenho com um brilho de sol das manhãs abertas. Não mais vivia a preta Nazaré, que, se viva fosse, talvez afastasse esse rio grandão, do Chico das ventas, da filha que tanto leite lhe mamara.

Na casa do sem-jeito tudo foi arranjado. Dona Dolores conseguiu a permissão da irmã exigente e intransigente com a virgindade da mulata. Grelo esperando prenda de casamento: véu e grinalda de flor de laranjeira, com homem dotado, de agrado de família.

O Dico da Tiquara, que, entre uma lua e um sol, deu de aparecer no Flor do Tempo descobrindo festa nos dentes de Mundica, fora esquecido. Antes, tinha sofrido do mal do desamparo o João, baralho da desobriga do Padre Delfino. O Olho d'água do tempo das eleições e dos festejos na cape-la de São Jorge, aquela que tem um espigado galo de barro na torre, sempre em posição de cantador continuo das madrugadas. Os banhos da vertente nuinha como a lua com essa cara de verão. A chapada do pequi. A matinha das guabirabas. A moagem e o atrevimento respeitoso dos cambiteiros. Tudo era carta que sobrava no baralho da Mundica, cheiinho na tampa de valete e de viagem pra Teresina.

A Josefa, com olho de ciência, a mexer nos bilros, no orgulho de dispensar o uso do pince-nez , cochichava: – esta bichinha só tando com o diabo nos couros. Formiga quando quer se perder cria asas.

Da parte dos cambiteiros, seu Zuza quase recebeu carta de muita respeitação pra esfriar o fogo da cabrocha. A viagem espalhou tristeza no verde das canas. Quem botaria pau doce do palheiro pra boca do engenho, sem maus pensamentos? As cheias ancas da Mundica eram uma ilusão de boa safra. Os mamões verdes da Maria Paula bem que ajudavam a remoer o cansaço do trabalho. Refrigério dos mais necessitados, na palma da mão sacrificando a espécie.

Numa madrugada rasa, o sol quase de fora pelas encostas, o carro-de-boi toma o caminho de Parnarama. Quando por lá chegaram, na hora em que o feijão é mais gostoso – dona Dolores e Mundica vão direitinho à balsa que as espera para o destino. Léguas d'água nos olhos da mulata, buscando beleza e saudade nas palmeiras de babaçu que ficam para trás. Viagem mansa como o passo do boi sabonete, parceiro de canga do boi mimoso.

Fez-se a última volta do rio pra alcançar Teresina. Todos apontaram a capital. Os mais curiosos distinguiram a torre da igreja de Nossa Senhora do Amparo. A mulata espichou o corpo como se acordasse dum sonho de encantamento. Passa em revista a paisagem. Não usa o indicador. Seu olhar demora espreguiçando-se na torre da igreja e não enxerga o galo da capelinha de São Jorge, que se habituara a ver. Espanta-se. Sente um mundão a engolir-lhe os pés.

Num fechar de olho, entra na cidade com o pé esquerdo. Vive na proteção de dona Dolores numa venda de secos e molhados. Faz vida de mulher adulta. Dispõe das noites nos bares como cheiro de creolina. Entra em muitos carnavais. À sombra de uma quarta-feira de cinzas, volta ao cais. O céu era grave. Nenhuma estrela de quebra. No outro dia, as manchetes dos jornais receberam a sorte da mulata.

Fonte:
José Maria de Barros Pinho.
A Viúva do Vestido Encarnado.

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