quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Caio Porfírio Carneiro

Caio Porfírio de Castro Carneiro (Fortaleza, 1928) bacharelou-se em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Transferiu-se para São Paulo em 1955. Secretário administrativo da União Brasileira de Escritores de São Paulo desde 1963. Ganhou vários prêmios literários, como o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e o Pen Clube de São Paulo. Contos seus estão incluídos em duas dezenas de antologias do gênero e traduzidos para o espanhol, italiano, alemão e inglês. Publicou os livros de contos Trapiá (1961); O Menino e o Agreste (1969); O Casarão (1975); Chuva – Os dez cavaleiros (1977); O Contra-Espelho (1981); 10 Contos Escolhidos (1983); Viagem sem Volta (1985); Os Dedos e os Dados (1989); Maiores e Menores (2003). Escreveu também romances, como O Sal da Terra (1965), que foi traduzido para o italiano, árabe e francês e adaptado para o cinema, e Uma Luz no Sertão (1973), também as novelas Bala de Rifle (1963), A Oportunidade (1986), Três Caminhos (1988) e Dias sem Sol (1988), além de literatura juvenil, poesia, reminiscências, perfis e memórias.

Caio Porfírio Carneiro é um dos mais fecundos cultores do conto no Ceará. Sua obra de contista e romancista tem sido objeto de estudo de diversos críticos. Alguns o consideram um dos mais importantes contistas brasileiros do século XX.

As primeiras narrativas curtas de Caio têm como palco o sertão, o campo, os vilarejos, as pequenas cidades. Em “Milho empendoado”, de Trapiá, os personagens circulam pela caatinga, pelo mata-pasto, pelo roçado. Do campo para a cidade pequena é um passo. A vida rural é retratada nesses contos com fidelidade. Em “O pato do Lilico” também se vê toda aquela paisagem sertaneja, quer no campo propriamente dito, quer no interior das casas, bem como os costumes (cavalo de talo de carnaúba), os objetos (bilros de almofada, cabresto, cangalha, grajaú), a linguagem (bichinho, socar-se, rachar de peia). Em “Come gato” o contista entrança duas histórias aparentemente díspares – a disputa política entre coronéis e a humilhação diária do pobre Olavo, apelidado pela meninada de Come Gato – para pintar um quadro de agudo realismo. Esses primeiros contos são relativamente longos, se os compararmos aos de alguns livros posteriores. Neles os diálogos se alongam, entrecortados por breves narrações.

A estrutura das narrativas de Caio foi se transformando lentamente de livro para livro. A linearidade de Trapiá desaparece a partir de Os Meninos e o Agreste. “O bilhete” é composto de diversas ações, ao longo dos dias. O espaço é o de uma cidade pequena, porém não mais Trapiá. O enigmático – um dos esteios da obra de Caio – prende o leitor desde o primeiro diálogo. Novas estruturas de conto aparecem aqui e ali. Em “O pecado” exibe elementos do teatro: como se fossem subtítulos, os atos são encimados por anotações como “Voltando da missa”, “Em casa”, “À tarde, no campo de futebol” etc.

Os contos de O Casarão também se afastam do discursivo linear. Veja-se a espinha dorsal de “A herança”: o narrador descreve um morto (“mãos cruzadas ao peito”), sem se apresentar. Passa a narrar uma reunião familiar, em volta do defunto. Somente na segunda página o narrador se mostra como personagem. E mais adiante como menino, na ordem recebida “– Vá deitar-se.” A narração se faz lenta, detalhada. Na terceira página um flashback curto, e logo o passado se funde ao presente de forma sutil.

O elemento tempo é regido com diversas técnicas, como em “A volta”, no qual os tempos se confundem. Já em “A viga” as ações se dão em sequência e também em círculo.

Observa-se em Caio também a ausência de descrições. Assim, a referência a casco de animal, novilho, ingazeira sugere o espaço rural. No terceiro volume ainda são longas as narrativas, sempre repletas de diálogos. Há, porém, narrativas em outro formato, como “A busca”, sem diálogos e num só parágrafo. O espaço das ações é um casarão. Em “A herança” há certo mistério no desenvolver-se da trama, com desfecho inesperado ou enigmático. A intriga é muitas vezes recheada de mistério, como em “A busca”.

Chuva (Os Dez Cavaleiros) é quase um romance, se é possível isto. A chave para esta observação se encontra na última narrativa, quando o décimo cavaleiro, dirigindo-se ao seu interlocutor, fala: “Olhe aqui, homem: de toda a multidão que conheci, correndo a planície, a serra do Catolé e todos os lugares que cercam a Lagoa Grande, nove ficaram na minha cabeça. Nove. Todos cavaleiros como eu”. Como se dissesse ter conhecido as outras nove histórias do livro. Nos dez contos há sempre um cavaleiro vestido de capote e coberto de chapéu, e outra personagem, ambos sem nome explícito. A paisagem é composta de chuva, um ambiente de campo, com um casebre ou choupana, com chão de barro batido, às vezes uma vila, com uma pracinha, uma igreja abandonada e gente desvalida, sofrida, com medo. De comum também o espaço apenas referido da serra do Catolé e da Lagoa Grande, sempre muito distantes. Quase uma miragem. Para completar a narrativa, um drama e um desenlace enigmático, de parábola. Os desfechos muitas vezes estão nos títulos das histórias.  O fantástico se desenha em quase todos os contos, quer no desenrolar da trama, quer no epílogo. Seria, porém, um fantástico mais próximo da parábola, do simbólico, do enigmático. Outras vezes é apenas uma sugestão. Esse enigmático é como que o sangue do corpo das narrativas de Caio, presente desde os seus primeiros livros. Alguns personagens chegam a parecer anormais, por conta do enigma que conduzem. Em “O olhar”, de Maiores e Menores, o narrador é tratado como louco, “vigiado por pessoas de branco, dopado de tantas agulhadas”. Em “Antanho”, do mesmo volume, o leitor não sabe se o tempo existe ou não existe, se a história é real ou irreal. O protagonista volta à vila de sua infância muitos anos depois. Está tudo igual a antes, à exceção de uma motoca que “entrou como um raio na rua, aos papoucos” (...). No final, o motoqueiro esclarece tudo: “– O que foi fazer naquela vila morta? Lá não mora mais ninguém.” Afinal, quem é o homem que volta à vila sem vida, à procura de uma tal Maria Cristina (que já devia ter morrido há muito), conversa (ou imagina conversar) com “fantasmas”?

Em todos os contos de Chuva a narração se dá na terceira pessoa, mais para observador do que para narrador onisciente. Talvez apenas em um trecho de um dos contos o narrador se faz onisciente. A narração é quebrada, aqui e ali, por breves e ásperos diálogos, em linguagem culta ou literária. Caio manipula a linguagem com sabedoria, valendo-se de muita imaginação e do conhecimento das melhores ferramentas da arte de narrar.

Em Os Dedos e os Dados, o contista parte por caminhos menos espinhosos, lamacentos, embora retrate também graves conflitos humanos. E se serve de formas variadas para compor as histórias. “A Promessa” é quase todo um só diálogo, de frases curtas. “A Confissão”, como o título sugere, é um diálogo. Em “A Missão” não ocorre uma só fala e a narração é composta de um longo parágrafo e uma frase curta: “A outro qualquer caberia terminar a tarefa”. É a busca da crucificação, novo Cristo sem algozes. Alguns contos tratam do relacionamento amoroso e podem ser tidos como eróticos.

Caio é um especialista da história curta, breve. No entanto, é capaz de se alongar, como em “Um Segundo”. E aí mora o mistério. Em um segundo ele consegue ser mais expansivo do que em histórias que duram horas.

A Partida e a Chegada é outro livro de construção inusitada, a lembrar uma casa composta de fachada rococó, paredes barrocas, colunatas romanas. Como Chuva, deve ser lido como um todo, conto a conto. Leiam-se os diálogos de abertura do volume, como se fosse um prólogo ou, em termos de arquitetura, o átrio de uma casa romana ou o alpendre de antigas casas sertanejas. Duas personagens, sem nome explícito, conversam, como se resumissem as histórias seguintes. A descrição do ambiente é mínima: a lua, as nuvens, as estrelas, o céu. São como cenário singelo de um palco pequeno, onde dois personagens encenassem cinco brevíssimas peças. Tudo muito contido.

Ao contrário de Chuva, todo ambientado no campo, as narrativas deste são, na maioria, de inspiração urbana. No primeiro conto, “A Carícia”, é narrado  assalto a um banco. O contista utiliza alguns procedimentos formais mais ousados, embora não mais de vanguarda (hoje), como o cruzamento de narrações na terceira e na primeira pessoa, além do diálogo indireto e da linguagem oral. As narrativas “Saparanga” e “Zecapinto” ocorrem num lapso de tempo bem mais longo do que na maioria das histórias curtas de Caio.  A contrastar com a tensão do primeiro conto, nestes perpassa um humor circense. Os protagonistas são um tanto picarescos. Há, no entanto, uma variedade de enfoques no livro. Assim, “O Crime” é quase a reconstituição de um fato histórico, em Caucaia, Ceará.          

Os livros de Caio têm a marca de Caio, até pela estrutura dos contos. Em Maiores e Menores o contista mostra narrativas escritas entre 1995 e 2002. Umas mais longas, outras mais curtas. Em “Cantiga de ninar” os personagens não têm nomes explícitos, o que ocorre em muitas outras narrativas. A história é narrada quase toda num longo diálogo conduzido por narrador onisciente. No entanto, isento de opinião. O diálogo é interrompido aqui e ali pelo narrador, para indicar ao leitor o lugar onde um homem conversa com outro mais velho e para mostrar os movimentos dos personagens: “Olhou o carro que ia em disparada na estrada asfaltada, do outro lado da porteira” (...). Sabe-se, então, que os personagens se encontram numa casa de campo. Caio, porém, não se atém a esse tipo de narrativa. Em “Ele”, por exemplo, o leitor não sabe quem é o narrador até as proximidades do final da história. Percebe que o ponto de vista é da primeira pessoa quando lê: “Ele me olhava com olhar neutro.” Além disso, o conto é narrado no pretérito imperfeito (“Ele sempre se sentava na mesma cadeira”) até o desfecho, quando o narrador substitui aquele tempo verbal pelo perfeito (“Ele ficou assim depois que a esposa se foi”...) e pelo presente (“Ele me assusta quando olho para a criadinha”).

Quase todos os livros de narrativas curtas de Caio apresentam características de romance. Veja-se Trapiá. As histórias se desenrolam na pequena cidade de Trapiá e em seus arredores. Não há um conto intitulado “Trapiá”. Em Casarão ocorre o mesmo processo: as narrativas têm como palco um casarão, embora em tempos diferentes.

Embora também romancista, e dos bons, Caio Porfírio Carneiro é contista com pleno domínio das técnicas da história curta. Seus contos não são esboços de novelas ou romances. São contos de alta linhagem, merecedores de leituras, releituras, estudos.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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