sábado, 11 de fevereiro de 2012

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - IV – Um soco histórico


Nisto o pássaro Roca principiou a descer, sempre descrevendo círculos em espiral. O burro ia-se tornando cada vez mais visível e a pontada no coração de dona Benta cada vez mais forte. O barão preparou-se. Examinou a arma e carregou-a bem carregada. Pedrinho não podia compreender como um caçador daqueles, o mais célebre de todos, ainda usava espingarda de pederneira, em vez das modernas espingardas de fogo central. Explicação muito simples: o senhor de Munchausen era do tempo das espingardas de pederneira e portanto não podia conhecer as de fogo central.

— Veja, vovó — disse o menino mostrando-lhe a espingarda do Barão. — Chama-se espingarda de pederneira porque tem esta pedra de isqueiro aqui junto ao ouvido. O gatilho dá na pedra e tira uma faísca, e a faísca lá vai incendiar a pólvora. Interessante, não?

Dona Benta nem ouviu. Estava de olho mas era no pássaro Roca.

— Uma vez — disse o senhor de Munchausen — perdi a pederneira desta mesma espingarda numa das minhas excursões, e justamente quando um veado ia passando. Pensam que me atrapalhei?

Fiz pontaria e, há! dei um formidável soco no olho. Saiu uma faísca ainda melhor que as da pederneira — e matei o veado!

Emília, assim que ouviu aquilo, ficou ansiosa por ver o barão repetir a façanha e, sem que ninguém percebesse, deu jeito de sacar fora a pederneira da espingarda — e escondeu-a. Queria ver se ele tirava mesmo fogo dos olhos ou era peta.

O pássaro Roca ia continuando a descer.

— Atire, barão! — berrou Emília.

— É cedo, bonequinha! O cabresto ainda não está bem visível. Tenho de cortar o cabresto com uma bala no momento em que o pássaro estiver voando sobre o mar. Se não o burro cai em terra e acontece como o sapo que foi à festa do céu — esborracha-se!...

A gigantesca ave desceu mais e mais. O cabresto tornou-se por fim bem visível.

— É hora! — disse o barão erguendo a arma à cara. Fez a pontaria e — blef! — o gatilho deu em seco.

— Com seiscentos milhões de trabucos! — praguejou ele. – Onde teria ido parar a pederneira desta arma?

— Soque o olho! — berrou Emília.

— Sim, é o que há a fazer. Mas como a pontaria tem de ser muito bem feita, vou segurar a espingarda com ambas as mãos e você, Pedrinho, prega o soco. Vamos, não tenha dó!...

Todos ficaram em suspenso, sentindo que algo de muito importante ia acontecer. Tal qual no circo de cavalinhos, quando a música pára. Era um momento notável da vida de Pedrinho. Ia dar um soco histórico no olho do mais célebre caçador do mundo! E tinha de fazer serviço muito bem feito para não estragar o capítulo.

— Soco inglês! — gritou Emília.

O menino tirou o paletó, arregaçou a manga da camisa, girou três vezes no ar o punho cerrado e por fim — bam! deu tal murro que quase arranca o olho do barão fora da órbita. Mas valeu! Saiu uma faísca linda, que penetrou feito um corisquinho dentro do ouvido da arma e inflamou a pólvora. Bum! Um tiro reboou, daqueles que levam segundos ecoando por montes e vales. E certíssimo !... A bala deu bem no cabresto, cortando-o como se fosse navalha. O burro imediatamente começou a cair com velocidade crescente, até que, tchibum! — mergulhou no oceano.

— Afundou para sempre, o coitado! — exclamou Narizinho.

— Não tenha medo. Ele bóia já — disse o barão.

De fato. Segundos depois aparecia à tona d’água uma aflitíssima cabeça de burro, a berrar:

— Socorro! Acudam-me que não sei nadar!...

— E esta agora! — exclamou o menino. — Querem ver que o nosso burro escapa do pássaro Roca para morrer afogado estupidamente, como um carneiro?

— Vamos salvá-lo, Pedrinho! — disse o barão despindo o casaco e sacando as botas. — Será um crime deixarmos morrer um burro que fala.

Entraram os dois pelo mar a dentro, nadando a largas braçadas em direção do náufrago.

— Segurem-no pelo rabo e puxem! — berrava Emília da praia. — Mas não puxem fora de conta que podem arrancar o rabo!...

Assim fizeram os salvadores. Um agarrou o burro pelo rabo e o outro pela orelha, e o vieram puxando para terra. Estava salvo o precioso burro falante, único exemplar conhecido, mas em que estado!... Ou por medo ou por ter passado tanto tempo no ar quase enforcado pelo cabresto, ou por ter bebido água demais, o caso era que nem falar podia. Apenas suspirava uns suspiros de cortar o coração de todos.

— Água! — gritou dona Benta. — Dêem-lhe água!

Emília, muito lampeira, pegou logo uma concha marinha das que abundavam por ali, encheu-a d’água do mar e despejou-a na boca do burro.

— Que burrice, Emília! — gritou Narizinho tornando-lhe a concha. — Pois não vê que ele está morrendo de tanta água do mar que bebeu? Água quer dizer água doce, boba...

— Pelo de cão se cura com a mordedura do próprio cão — respondeu a boneca, trocando as bolas dum dito que tia Nastácia usava muito.

E não é que deu certo? Aquela água da concha enjoou de tal maneira o burro que ele começou a vomitar todo o oceano que havia engolido. Melhorou imediatamente e sentou-se na areia com as patas da frente espichadas, tal qual as esfinges do Egito.

— Está melhorzinho? — veio perguntar dona Benta, passando lhe a mão pela cara.

— Um pouco melhor, obrigado! — foi a resposta do delicadíssimo burro, que ainda por cima lhe agradeceu com os olhos — uns olhos muitos brancos, ansiados pelas agonias da morte.
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Continua… O Pó de Pirlimpimpim – V – Fim do Visconde de Sabugosa

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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