quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Caminhos Para a Solidão)


A verdade é que à proporção que vivemos, vamo-nos sentindo mais sós, como uma ilha cercada de gente por todos os lados. Não a solidão dos cosmonautas, povoada de silêncios e de estrelas. Mas a solidão de um carnavalesco, cantando para não chorar, para se esquecer que está sozinho.

"Por certo a pior solidão
é aquela que a gente sente
sem ninguém no coração,
no meio de muita gente."


Gente tão perto de nós, com quem se esbarra na rua, que se atropela na corrida para apanhar a condução, que se acotovela nos ônibus, nos trens; gente tão próxima, mas na realidade, cada vez mais distante.

Gente que não existe. Ou por outra, que existe como multidão, anônima, fora de nossas realidades, apenas vago e fantástico cenário.

Sociólogos, psicólogos, têm procurado estudar o grau de desumanização do homem e da vida nas grandes cidades. Urbanistas e arquitetos projetam concepções salvadoras para esse pobre homem criado num caos. Que restará do homem que havia dentro de nós? Veja-se a indiferença com que encontramos pedintes miseráveis, crianças abandonadas, criaturas doentes, e seguimos tranquilos para a nossa sessão de cinema. Sua dor não nos toca; seus problemas não nos preocupam; fazem parte de todo um complexo mundo, em que vamos vivendo, despercebidos de nossa desumanidade. E a nos dizermos cristãos.

O remorso ficou no poema:

"Às vezes me envergonho
de alguma ajuda recebida,
quando sei que há tantos homens mais necessitados
sem um gesto de apoio ou de acolhida.

Me envergonho de gozar meu reduzido conforto,
quando sei que há tantos homens inteiramente
desabrigados, sem destino nem porto.

Me envergonho de meu egoísmo a se chamar de
altruísmo, quando dou uma esmola
e contínuo para a minha seção de cinema."


Bem diz a amarga letra da canção: "Ninguém é de ninguém"

Não temos tempo para os contatos cordiais, para cultivar a amizade, para trocar idéias em torno da mesa de um bar, ou de um café. Inventaram uma profissão "relações públicas", mas para se ganhar mais dinheiro. É diferente.

Os cafés que tinham mesas, os antigos cafés que eram como salas-de-espera de populares academias literárias, há muito desapareceram. Os próprios bares já se transformaram. E não só o cafezinho, ou a laranjada, tudo é tomado às carreiras, de pé, sem oportunidade para uma pausa amistosa, sem esse calor humano que faz do homem um ser integrado em sua coletividade.

Vivemos nas grandes cidades a pior de todas as províncias, cada um com a sua pequena "linha-circular". Passamos, diariamente, a carbono, a nossa vidinha.

Acordamos à mesma hora, apanhamos a mesma condução, encontramos as mesmas pessoas, trabalhamos com os mesmos colegas e companheiros.

Conhecemos as caras dos cabineiros, motoristas garçons, jornaleiros. São os habitantes da nossa "província cotidiana", mas, no fundo, nada ou pouco representam. São apenas acidentes do nosso itinerário, e a eles não nos prendem laços mais profundos que cumprimentos convencionais ou comentários supérfluos.

O "cafezinho" - essa expressão que encerra, no fundo, uma indisfarçável ternura do brasileiro por alguns efêmeros minutos de convívio humano, - é o último refúgio de sua inevitável desumanização. Saturado de trabalho, de tédio, ou da vida, da repartição ou do escritório ele tenta a escapada:

"Vamos tomar um cafezinho?"

Mesmo em pé, comprando ficha, sem poder sentar-se, ele se refaz um pouco. Tenta lembrar-se de si mesmo, dos outros. É o seu segundo de higiene mental, seu resto de sociabilidade. A oportunidade para um "papo" com o amigo eventual, ou com o conhecido. Para olhar as belezas que passam tão perto dos olhos, e tão longe... Para rir-se um pouco. Ouvir, ou contar a última anedota. Para sentir-se, durante uns poucos momentos, uma pessoa humana.

As grandes cidades vão asfixiando o homem, como um imenso polvo em seus tentáculos de concreto e de asfalto. Homem de infância no interior, o Rio (de Janeiro) às vezes me angustia, me oprime. Quase diria: me amedronta. Sinto necessidade de fuga. Mas, para onde? Fuga, não só ao ar cinzento, aos ruídos, letreiros luminosos, mas, principalmente à multidão indiferente que escachoa ao redor, atordoante e estranha. Que não sabe que existimos, não se interessa por nosso destino, não participa de nossas emoções; tão ao nosso lado, mas da qual nos mantemos capilarmente isolados.

Li, não me lembro quando, que um arquiteto suíço, Honeger, tendo construido um bairro, numa cidade africana, para tribos pouco civilizadas, projetou-o com todas as comodidades modernas inclusive água encanada. Para sua surpresa, quando expôs seu plano, as mulheres não gostaram. Preferiam suas antigas choças, mesmo sem tanto conforto, e sem água encanada. Preferiam continuar indo à fonte de águas limpídas, onde enchiam seus vasilhames de barro, ou suas latas. Era justamente nesses momentos que elas esqueciam um pouco o trabalho de casa, perdiam tempo conversando, tagarelando, e se sentiam humanas, deixando de lado problemas e preocupações. Era, digamos assim, para aquelas humildes criaturas, a sua vida social.

A civilização atual vai tirando ao homem todas as oportunidades de poder perder tempo. O homem vai se esquecendo de que, o que ele perde em tempo, ganha em vida.

Esses que não têm tempo a perder, são justamente aqueles que perderão a vida num passo adiante. Os homens se esqueceram de que não são máquinas, de que o coração não é um dínamo, de que os nervos e o espírito não possuem a estrutura ou a resistência do aço.

Já que somos uma ilha cercada de gente por todos os lados, vamos lançar, ao menos, vez por outra, uma ponte para o grande continente da convivência e da solidariedade humanas. A solidão dos homens normais é aquela que não prescinde das alegrias da amizade, da companhia do amor.

Oh, a inveja que sinto, hoje, dos moradores das pequenas cidades. Os que ainda têm tempo para se sentar nos bancos das praças, nas mesas dos cafés, olhar as belezas que passam, discutir política, "salvar" o mundo dos outros, porque o seu está seguro. Os que se visitam e são visitados. Os que ainda podem ter uma província verdadeira, mesmo violentada pela televisão, mas sem a subversão do tempo.

Os que ainda tem tempo para ler livros, ouvir música, olhar o céu, admirar a paisagem. Os que ainda têm tempo para amar a paisagem e os seres e - Oh!, suprema ironia! -até para se lastimarem da vida monótona de sua cidadezinha, o seu Paraíso impercebido.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

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