domingo, 5 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (As Três Camas)


Esta estória se deu no canto de uma loja de moveis novos e usados na Rua do Catete. Num canto escuro, ao fundo da loja, bem distante do escritório, onde o gringo e o amigo conversam sobre as contas a cobrar, os juros das letras entregues ao banco e os clientes novos em perspectiva.

Acabavam de armar uma cama ao lado de outra que já estava no local. Por estranho que pareça, uma em imbuia, estilo "chipandale", pobre, a outra, em pau-marfim, rica, estilo moderno.

Os empregados armaram a cama e foram embora. Foi quando no silêncio daquele canto da loja, ouviu-se uma voz fina de imbuia:

- Até que enfim me arranjaram uma companhia! Puxa! Já estava entediada!

E outra voz, clara e forte, de pau-marfim, respondeu:

- Também fico satisfeita de me colocarem aqui. Pelo menos terei com quem conversar um pouco. Estava com medo danado que me botassem junto a uma mesa de sala ou a uma poltrona.

- Ah! Lá isto é verdade. Antes só, que andar misturada com essa gente estranha!

- Você já esta aqui há muito tempo?

- Pois você não viu logo? Repare que já estou toda empoeirada, e estes gringos nem sequer me mandam passar um pano vez em quando. Eles não fazem muita questão de me vender. Pertenço a uma mobília barata, ai uns 200 cruzeiros novos.

- 200 cruzeiros novos só! Olhe que é pouco!

- Olhe que é muito, minha amiga. Fizeram um trabalho porco com a minha madeira, e se você me levantar as tábuas é que verá como tenho as pernas desconjuntadas. E a estrado que me deram! Pinho vagabundo, cheio de furos.

- Pois você merecia outra sorte! Estou estranhando, por que ouvi lá na carpintaria dizerem que a minha mobília seria de 1.500 cruzeiros novos!

- Tem sorte! Olhe, repare aqui, na cabeceira. Esta vendo esta mancha? Pois eles nem pensaram em lixar a envernizar direito! Parece até que sou doente!

- Mas há quanto tempo você esta aqui?

- A falar a verdade não sei, não. Esta vida é tão monótona, os dias tão iguais, que acho que me enganei na canta. Mas pelo menos há seis meses, estou aqui, de pé... com poeira e tudo.

- É..., é muito tempo... E não tem vindo gente ver?

- Ter, tem... Mas o diabo do gringo só leva o pessoal para o outro lado onde há mobílias caras... Olhe que com a sua vinda eu talvez arranje um pretendente... Pelo menos melhorou muito a situação...

- Pois faço votos que realmente eu possa ajudar um pouco...

- Alias, minha amiga, eu nem sei se vou ficar satisfeita de sair daqui... Você sabe, mas destino de pobre é este mesmo. Nascemos para sofrer...

- Ora, não diga isto.

- É verdade. Veja você que destino há de me esperar. Algum operário ou pequeno funcionário me compra aqui a prestação, e eu vou parar numa casinha de subúrbio... vou viver em casa de pobre, servir de cadeira pra costura, de brincadeira pros garotos pularem... E na certa que vou comer pó como o diabo... Ah! porque não nasci eu uma cama em pau marfim!

- Gostaria tanto?

- Natural.

- Pois minha amiga, não vejo muita diferença, não.

- Não vê?

- Afinal que diferença faz eu estar numa casa de rico, não vou servir ao mesmo destino?

- Lá isso é verdade, mas pelo menos você vai pisar em cima de tapete, vai ser espanada todo dia... Talvez vá para um apartamento alto, sinta um pouco de ar, de sol... Ah! que saudades do tempo em que andei no tronco da imbuia no meio da mata, e apanhava sol e chuva . . .

- No fim, minha amiga, tudo vai dar no mesmo. . . E sorte teremos nós é se aqueles que nos comprarem não forem muito pesados... Sabe o que ouvi conversarem na carpintaria?

- Que foi?

- Estavam consertando uma cama usada.

- Sim, e que tem?

- Pois estavam dizendo que a cama quebrara com o peso dos que dormiam nela. E só vendo como o pessoal punha pimenta na história!

- Olhe, você quer saber de uma coisa? Quando penso nisto, eu tenho até vontade de ser uma poltrona.

- Ah! isto também não, seria rebaixar-nos demais! Você já pensou na maneira como os homens se utilizam da poltrona? Em nós pelo menus, eles ficam deitados...

- Sim, mas fazem cada coisa...

- E como é que você Sabe disto?

- Ora, minha amiga... . Eu estou aqui há seis meses... De passagem já ouvi muita conversa também... Pois você não esta contando coisas que ouviu lá na oficina?

- A minha esperança é servir a um casal de recém-casados, assistir a uma lua-de-mel...

- Pois não lhe gabo o gosto. O meu desejo era ser cama de mulher solteira...

- Sonsa! Alias você deve perder as esperanças, porque afinal você foi feita pare casal. . .

- Eu sei. Ninguém pode lutar contra o destino ... Mas era o que eu queria...

- Pois olhe, que deve haver muita cama solteira por ai, capaz de fazer corar uma cama... de pedra!

- Pelo visto você também ouviu mais coisas lá na oficina!

- Ora, se ouvi.

Nisto a converse é interrompida por alguns empregados que trazem duas mesinhas de cabeceira, colocando-as perto das duas camas. Depois se afastam.

A cama de imbuia:

- Ih! Pelo visto vamos ter mais companhia.

A cama de pau marfim:

- É... e esta parece cama usada. Não vê pela aparência das mesinhas. . .

- Silêncio. Lá vem os homens carregando outra cama.

Os empregados chegam trazendo outra cama, uma cama velha, usada. Armam as peças, aparafusando-as nos lugares, e saem.

A cama de imbuia:

- Boa tarde companheira!

A cama de pau marfim:

- Pelo vista ela não gosta de conversa.

A outra cama:

- E não gosto mesmo. Será que nem bem cheguei não posso ficar descansada um minuto...

A mesa de imbuia:

- Coitada ! Esta sofre dos nervos...

A cama de pau marfim:

- É... e esta bem estragada . . . De só uma olhadela pro estrado. . .

A cama que chegou:

- E vocês não viram nada. se olhassem pro colchão é que iam ficar admiradas... Ora vejam só, que duas caminhas virgens tão metidas...

A cama de imbuia:

- Afinal não sabe precisa ficar toda abespinhada . . . Ninguém a ofendeu . . .

A cama que chegou:

- E será que eu ofendi a pudicícia das donzelas, chamando-as de virgens... Ou não são?

- Eu sou, respondeu a cama de imbuia.

- Eu também, não esta vendo logo... Ainda estou cheirando a madeira. . . Nem o homem do verniz me botou a mão...

- Pois, olhe minhas filhas, vocês não sabem a vida que as espera.

A cama de imbuia:

- Pois nós, falávamos há pouco justamente sobre isto. Fazíamos conjecturas. E tão ruim a vida de uma cama!

A cama que chegou:

- Tão ruim?! Vocês vão ver!

A cama de pau marfim:

- Por que você foi vendida novamente pra loja?

- Porque a mulher que me tinha resolveu acabar com o negócio.

- Negócio? perguntou a cama de imbuia.

- Sim, negocio. E quem pagava o pato era eu. Pra dizer a verdade eu era a base de todo o negocio, até que a policia bateu lá!

A cama de pau marfim:

- E que negocio era esse?

A cama que chegou:

- Ora, essa! Será possível que eu precise dizer que negocio era?

A cama de pau-marfim:

- Puxa! que vida interessante você levou.

A cama que chegou:

- Interessante! Eis ai uma caminha com vocação suspeita... Não há de ter bom destino...

A cama de pau marfim:

- Você sem ofender não passa.

A cama que chegou:

- Não seja tola. Você pode morrer de curiosidade por assistir porcarias, mas eu já estou cheia... Felizmente já me livrei daquele colchão imundo que aguentei durante três anos...

A cama de imbuia:

- Mas você só tem três anos de uso? Esta muito bem conservada.

- Três anos?! Três anos estive eu com a tal mulher. Tenho doze anos de uso, minha filha. Já estou derreada, precisando que me troquem as pernas...

- Doze anos! exclamou a cama de Pau marfim.

- Sim, mocinha. Sim, meu anjo, doze anos! Não vá corar essas brancas faces de pau-marfim se lhe contar o que passei. . .

As duas camas:

- Ah' conte! conte!

- Pois minhas filhas, eu fui comprada para uma lua-de-mel... No fim de seis meses voltei pra oficina, para que me apertassem as juntas, os calços. Sabem, estas traves de madeira que aguentam o estrado?

- Pois dois deles se partiram... Tiveram que ser trocados.

- Pesavam tanto assim os recém-casados?

- Não era tanto o peso . . .

A cama de Pau marfim:

- Que coisas você não viu, hein?

- Ver, não vi. Vocês sabem que nos não temos olhos. Mas o que não adivinhei . . . Bem! Pouco tempo depois, fui vendida. Botaram um anuncio num jornal, a eu troquei de dono. . .

- Logo, tão cedo?

- Ele era viajante, teve que mudar de cidade, e preferiu vender os moveis. Iniciava-se assim minha vida airada . . . Fui comprada pelo dono de um hotel... Vocês podem lá imaginar o que é ser cama em quarto de hotel?

A cama de pau marfim:

- Que vida dura!

A cama de imbuia:

- Cala a boca, sua tonta!

A cama que chegou:

- Pois bem que foi uma vida dura a partir dai. Em cima de mim, foi morta uma mulher, e sai até no jornal... Publicaram meu retrato com a mulher em decúbito dorsal, na primeira página...

- Mataram a mulher?

- O sujeito matou. E sabe que corri o risco de ser queimada?

- Como foi isto, perguntaram, a uma voz, as outras duas camas.

- Pois o sujeito pensou em queimar a cama, e deixar o quarto pegando fogo pare apagar a prove do crime.

A cama de pau marfim:

- E por que ele não fez isto?

- Porque com o ruído da lute e os gritos da mulher... mas já era tarde quando chegaram.

A cama de imbuia:

- Puxa! que susto você passou! Ser incendiada como qualquer acha de lenha sem nome nem estilo...

- Sei lá, meu bem. Eu até acho que preferia esse fim.

- E depois...

- E depois continuei na mesma vida... Foram oito anos e pouco, bem contados. Mudaram-me de quarto uma porção de vezes . . . Um dia, um casal dormiu com um filhinho pequeno de um ano e pouco... E o garoto durante a noite... molhou-me até os ossos

A cama de pau marfim:

- Eu queria ver era a cara do colchão numa horas destas!

A cama de imbuia:

- Ora, não zombe da desgraça alheia.

A cama que chegou:

- O que eu sei é que ele pelo menos apanhou um pouco de sol. O gerente mandou botar ele numa janela dos fundos pra secar ...Mas eu tive que secar ali mesmo... Uma outra vez trouxeram para o quarto duas camas pequenas, pares dois garotos... Mas os pais saíram, deixaram os garotos sozinhos, e eles me escolheram para palco de suas travessuras . . . Pularam tanto... tanto... que me arrebentaram as costelas... quero dizer, o estrado...

A cama de imbuia:

- Coitada, e você foi levada pra oficina?

- Vocês não vem estas ripas aqui por baixo? Pois estão aqui desde essa ocasião ...

A cama de pau marfim:

- E quando é que você foi pra casa da tal mulher... a tal que tinha o tal negocio...

A cama velha:

- Pois eu não digo que esta caminha tem umas inclinações suspeitas... Que curiosidade! Vou contar a vocês o melhor da coisa. E que vocês aproveitem minha experiência... Ah! nos três anos que passei lá, perdi-me completamente...

A cama de Pau marfim:

- Ficou mesmo uma cama perdida?

- Perdida, sim, meu anjo, Por que? Faz alguma objeção?

- Não, nada.

- Não pense que você, porque é de pau marfim, com esta madeira toda acetinada, esta livre disto... Pois vou contar-lhes então...

Nesse instante ouvem-se os ruídos de passos. São os empregados que trazem uma caminha pequena de criança, esmaltada, com desenhos infantis na cabeceira; e a colocam junto da cama velha. Chegam, armam a caminha e se retiram.

A cama de imbuia:

- E então?

A cama de Pau marfim:

- E depois... que a que houve com você?

A cama velha:

- Vocês não tem vergonha, não? Então não vêem logo que eu não vou continuar com estas estórias na frente desta criança?!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

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