Se você quiser, compre um carro; é um conforto admirável. Mas não o faça sem conhecimento de causa, a fim de evitar desilusões futuras. Saiba que está praticando um gesto essencialmente econômico; não para a sua economia, mas para a economia coletiva. Isso quer dizer que, do ponto de vista comunitário, o automóvel que você adquire não é um ponto de chegada, uma conquista final em sua vida, mas, pelo contrário, um ponto de partida para os outros.
Desde que o compre, o carro passa a interessar aos outros, muito mais que a você mesmo.
Com o carro, você está ampliando seriamente a economia de milhares de pessoas. É uma espécie de indústria às avessas, na qual você monta um engenho não para obter lucros, mas para distribuir seu dinheiro para toda a classe de pessoas: industriais europeus, biliardários do Texas, empresários brasileiros, comerciantes, operários especializados, proletários, vagabundos, etc.
Já na compra do carro, você contribui para uma infinidade de setores produtivos, que podemos encolher ao máximo nos seguintes itens: a indústria automobilística propriamente dita, localizada no Brasil, mas sem qualquer inibição no que toca à remessa de lucros para o exterior; os vendedores de automóveis; a siderurgia; a petroquímica; as fábricas de pneus e as de artefatos de borracha; as fábricas de plásticos, couros, tintas, etc.; as fábricas de rolamentos e outras autopeças; as fábricas de relógios, rádios, etc.; as indústrias de petróleo e muitos de seus derivados; as refinarias; os distribuidores de gasolina, as oficinas mecânicas; as lojas distribuidoras de autopeças; o Estado (através do tributo).
Você já pode ir vendo a gravidade do seu gesto: ao comprar um carro, você entrou na órbita de toda essa gente; até ontem, você estava fora do alcance deles; hoje, seu transporte passou a ser, do ponto de vista econômico, simplesmente transcendental. Você é um homem economicamente importante para os outros. Seu automóvel é de fato uma sociedade anônima, da qual todos lucram, menos você.
Mas não fica nisso; você estará ainda girando numa constelação menor, miúda mas nada desprezível: a dos recauchutadores, eletricistas, garagistas, lavadores, olheiros, guardas de trânsito, mecânicos de esquina. Você pode ainda querer um motorista ou participar de alguma das várias modalidades de seguros para automóveis. Em outros termos, você continua entrando pelo cano. No fim deste, há ainda uma outra classe: a dos ladrões, seja organizada em sindicatos, seja a espécie de franco-puxadores.
As perspectivas de suas relações com os diversos setores supracitados são as seguintes: você pode ter sorte com o carro adquirido, mas pode também ter azar; as oficinas mecânicas boas ou más, sempre lhe arrancarão um máximo de tutu com um mínimo de esforço; as fábricas de autopeças exploram os vendedores, os vendedores apelam para você; nos postos de gasolina, a lubrificação de seu carro pode ser malfeita, o óleo pode não ser trocado, e na própria gasolina você pode ser lesado; uma oficina pode também causar a seu motor um dano irremediável ou trocar uma peça boa por uma peça ruim; o recauchutador pode dizer-lhe que seus pneus não prestam mais, a fim de vender-lhe pneus novos, e recauchutar os velhos para vendê-los a terceiros; o garagista e o mecânico poderão de vez em quando dar uma voltinha no seu carro, estando você de sorte se a batida que ele der for de pouca monta; o mecânico de esquina, muitas vezes indispensável, é prejuízo certo; o lavador jamais cumpre o trato de fazer o trabalho todos os dias; o guardador, se não for muito bem gorjeteado, reserva para você as piores vagas e manobra com o seu carro como se fosse um tanque de guerra; se você tem motorista, considere-se não o proprietário, mas o sócio dum automóvel: são os motoristas os melhores filhos, sobrinhos, netos, pais, tios e primos do Brasil, estando a todo momento precisando de visitar esses parentes enfermos; o guarda de trânsito, se é honesto capricha na multa; caso contrário, capricha na facada; as companhias de seguros são ficções: no momento em que você bateu, ou foi batido por um motorista que tenha seguro contra terceiros, há de aprender dolorosamente que o valor dos contratos dessa natureza é muito relativo. Uma choldra, para dizer tudo.
Restam ainda os ladrões ou os outros ladrões: arrombam-lhe o carro, carregam pneus sobressalentes, espelhos, ferramentas, calotas, aros, rádio, antena, objetos deixados no porta-luvas e, pior que tudo, os documentos. Às vezes levam o carro todo; a polícia lhe dirá que não dispõe de meios para prender o ladrão.
Como proprietário de automóvel, você ainda terá relações com outras pessoas; com o Serviço de Trânsito, que poderá, entre outras picardias, esvaziar seus pneus; com os colegas motoristas, que preferem bater no seu para-lama a dar uma marcha à ré de meio metro; com pedestres e ciclistas imprudentes; com as crianças diabólicas que riscam a sua pintura, sobretudo quando o carro está novinho em folha; com os sujeitos que só dirigem de farol alto; com os barbeiros de qualidades diversas, alguns mortais; com a juventude transviada; com parentes e amigos, que o consideram um sujeito excelente ou ordinário, conforme sua subserviência à necessidade deles.
Poderia escrever páginas e páginas sobre o automóvel que você comprou ou vai comprar, mas fico por aqui: tenho de tomar um táxi e ir à oficina para ouvir do mecânico que o meu carro ainda não está pronto. De qualquer forma, não desanime com minha crônica: paga a pena ter carro, pois ser pedestre, embora mais tranquilo e mais barato, é ainda mais chato. A não ser que você tenha chegado, com Pascal, à suprema descoberta: a de que todos os males do homem se devem ao fato de ele não ficar quietinho no quarto.
Fonte:
Paulo Mendes Campos. Supermercado. RJ: Tecnoprint, 1976.
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