Quando somos turistas em país estrangeiro surpreende-nos bastante a atitude quase hostil dos aborígenes: afora os profissionais diretamente interessados no tráfico de visitantes — choferes, garçons, gerentes de hotel, etc. a população não gosta dos turistas, que lhes invadem a privacidade e a importunam sem contemplações, achando que têm direito a fazer tudo uma vez que estão pagando.
Já agora, o Rio, que se prepara para receber o turismo em grande escala e em proporção às suas atrações, começa a sofrer o impacto da onda invasora; e, pelo visto, os cariocas já a ressentem. E apenas se trata do simples turismo doméstico — que os estrangeiros ainda não chegam em multidão suficiente para causar susto.
É uma graça ver a surpresa ofendida dos ipanemenhos — no seu reduto sagrado, o Castelinho! — quando lá ancoram dois, três ônibus carregados de paulistas do interior e começam a despejar sobre as areias ilustres legiões de invasores, que parecem tão estranhos corno se fossem marcianos, no meio à nudez cor de bronze dos nativos.
Vêm montes de rapazolas magricelas, de torso e canelas branquíssimos, alguns ainda calçados de sapato e meia. Despem na areia os excessos de indumento e se atiram às ondas dando gritinhos, carreirinhas, atirando água uns nos outros, numa comovedora folia infanto-juvenil.
Há as belas senhoritas das urbes interioranas, robustas moçoilas a estourar dos shorts; estas, curiosamente, quase nunca são todas brancas, ou branco-azedas, como dizem os praianos. Mas têm um ar inquieto e agressivo, e também praticam o mau modo de chegar à praia vestidas, e tranquilamente ali se despojam dos trajes urbanos, como se estivessem na intimidade dos seus quartos. Não que o striptease seja indecente — há sempre o biquíni por baixo — mas a utilização da praia para essas atividades de interior doméstico parece um sacrilégio aos seus donos habituais, que lá já chegam nus.
E há — supremo horror — as hordas de farranchos familiares — as gordas matronas, os pais barrigudinhos, a filharada indócil, as crias de casa. Como dizia um grupo de autóctones escorraçado, a subir a calçada da Montenegro, “são absolutamente coloniais, parecem ilustrações de Debret, só faltam vir numa rede carregada por dois crioulos!”.
E os farranchos se espalham com desenvoltura pelo sofisticado areal, e se desmandam em piqueniques, e trazem bacias para lavar as crianças, e comem o seu frango assado com farofa, e bebem nas suas garrafas térmicas e um deles chegou ao inimaginável: trouxe até churrasqueira, cujo aroma de carne assada, vencendo a maresia, envolveu completamente os últimos abencerragens locais que se haviam refugiado no pier do Emissário.
Por meu lado confesso que, nessa briga, estou do lado dos turistas. O sol — e a praia — são para todos, sejam eles do Leblon ou de Andrelândia. Mas o final da história não consigo prever. Ipanema será esvaziado e entregue à invasão interiorana? Ipanema reagirá, e erguerá cercas de arame, muros de cacos de garrafa, instituirá aí pelotões de vaia, equipes de depredação de ônibus alienígenas? Só o futuro o dirá. Lembro, contudo, que paulista é filho de bandeirante: onde põe a bota, ali fica. Mais fácil será que os ipanemenhos se mudem para litorais mais protegidos, que em tempo ficarão também famosos e serão, por isso, igualmente invadidos. E tudo começará de novo.
Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.
Nenhum comentário:
Postar um comentário