quarta-feira, 25 de março de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Luzia)


— Não está me conhecendo? Sou a Luzia. Em casa todos bem?

— Oh, Luzia, desculpe. Ando com a vista meio fraca. Mas você está um bocado alinhada, criatura!

— O senhor acha? Bondade sua.

— Acho, não. É fato. Você se casou, Luzia?

— Que nada, doutor. Casamento é pra quem pode, quem sou eu?

— Você estava noiva quando saiu lá de casa.

— Estava sim, mas o senhor quer que eu seja franca? Não gostava dele, queria só casar, pra dar gosto à minha tia, que me criou. Aí eu pensei assim: Não tenho amor a este camarada, depois do casamento faço a infelicidade dele, não é direito. Até que meu noivo era legal, tinha uma alfaiataria em Niterói, carro na praça. Não fiz bem?

— Você foi muito correta, Luzia.

— Pois é. Mas depois me desiludi dos homens, sabe? Me desiludi completamente.

— Tão cedo!

— Tenho dezoito anos por fora, por dentro já perdi a conta. Veja só; fui ser cem por cento com o meu noivo, e quando arranjei outro namorado, não dei sorte.

— Também não gostou dele?

— Gostei demais, aí é que está. Foi o meu erro. Aí ele me disse que era casado, não podia remediar nada.

— Sendo assim…

— Mentira dele, doutor. Minha prima gostou de um cara que não usava aliança, quando foi ver ele tinha obrigação em casa, com cinco bocas. O meu não, se fez de pai de família pra não casar.

— É pena, Luzia. Mas não fique triste, há tanto marido ordinário nesse mundo, quem sabe se você não escapou de um!

— Ah, mas agora sou eu que não penso em casamento. Tenho mais que fazer.

— E que é que você faz?

— Pois o senhor não sabe? Quando saí de sua casa, resolvi acabar com o serviço de copeira. Empregada doméstica não resolve. Fiz o curso na escola de manicure, tirei certificado e fui trabalhar num salão de mulheres. Não dava pra pagar o quarto. O porteiro de uma boate olhou pra mim e disse: “Broto, não faz unha de mulher, que é fominha, faz unha de homem”. Mudei de salão, desta vez dei sorte.

— Ótimo, Luzia.

— Graças a Deus nunca mais andei sem dinheiro, o senhor acredita? O patrão só me paga no fim do mês, mas os fregueses dão boas gorjetas, de maneiras que tenho sempre algum na bolsa. Agora estou menos folgada, porque tive de comprar móveis, o apartamento estava tão vazio!

— Que apartamento, Luzia?

— O que eu aluguei. Um freguês se ofereceu pra prestar fiança, dizem que isso é difícil.

— Não é difícil, é um sonho. E você se queixa dos homens?

— Quer dizer: de todos, não. Comprei os móveis no crediário e agora vou comprar uma radio-vitrola. Quando acabar o pagamento compro a geladeira.

— Parabéns, minha filha, você venceu.

— Ah, doutor, não diga isso. Estou só começando. Quando quiser, apareça lá em casa que me dará muito prazer. Casa de pobre, mas tem uísque pros amigos. Recomendações à madame, um beijo pros netinhos!

E seguiu — o alegre estampado, a saia curta, as pernas longas e bem esculpidas, o bico fino dos sapatos, o sorriso de dentes alvos no belo moreno carregado do rosto.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

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