As tochas incendiavam a coreografia do demônio, que ignorava a santidade do templo às costas. O diabólico rosto parecia flutuar, enquanto o corpo escarlate e branco deslizava em passos firmes, como se a pisar almas. Flautas orquestravam o desfile dos pecados, enquanto tambores marcavam a marcha dos suplícios. Olhares humanos admiravam a entidade de olhos esbugalhados, chifres protuberantes e dentes afiados. O derradeiro passo. Era o fim.
Aplausos. Ensandecidos aplausos.
Nomura abandonou o palco e correu para trás do pano, em que pinheiros de tinta espalhavam seus galhos aprisionados. Seu corpo havia sido possuído pelo demônio. Assustado, retirou a máscara. O bruxulear das tochas que cercavam o palco tomavam a face ainda mais assustadora. Nomura derrubou a máscara, que, do chão, continuava a sorrir.
Estaria enlouquecendo?
Talvez a loucura fosse o preço a pagar. Desde as primeiras performances de Kanami Kiyotsugu e seu filho, Zeami, a arte do teatro Nô nunca havia testemunhado um ator tão talentoso quanto Nomura. Tão talentoso e admirado. Porém, a que preço…
Quando as tochas se apagaram, Nomura buscou refúgio em um tranquilo aposento, nos fundos do templo xintoísta, que em seus rituais originou o Nô.
Despojou-se do peso de sua pomposa pele teatral.
Antes de apagar a lamparina e mergulhar em total escuridão, Nomura se separou da máscara que o consagrara. Depositou-a em uma caixa e a escondeu debaixo do altar do templo. Pensou que, agindo dessa forma, protegido pelos deuses, sobreviveria àquela noite.
Relutante, apagou a luz.
Cricrilar de um grilo próximo. Coaxar de uma rã longínqua. Uma gota pingando na bacia de pedra. Uma folha se desprendendo ao vento... Silêncio.
Nomura sentiu um arrepio. O mundo se calou. Há dez anos, quando ainda não usava máscara, Nomura se equilibrava em meias amarelas e fazia o povo rir, em suas performances de Kyogen, um cômico interlúdio teatral, que havia sido originado para amenizar a austera natureza do teatro Nô. Naquela época, Nomura não gozava de fama; pelo contrário, era motivo de risos entre os espectadores. Em suas atuações, os personagens de Kyogen expõem as tolices e as fraquezas humanas, que todos desejam esconder. Nomura sabia muito bem interpretar esse papel.
Há dez anos, naquela derradeira apresentação cômica, Nomura sentiu-se o mais tolo dos homens. Fazia os outros rirem. E fazia isso sem máscara, vestindo trajes comuns e meias amarelas. Sendo assim, as pessoas riam de sua atuação ou dele próprio? Naquela noite, na primeira fila, Nomura viu a mulher por quem era apaixonado. Ao seu lado, um homem o apontava, dizendo: "Esse é o pior ator que eu já vi em todo o Japão! Esse Nomura não interpreta nada! É apenas um perdedor que finge interpretar um perdedor e um palhaço que finge interpretar um palhaço! Na vida real, ele é muito mais engraçado". Nomura fixou o olhar na garota amada. Ela riu do comentário. Ela riu...
Envergonhado, abandonou o palco sem terminar a apresentação. Fugiu. As risadas se dissipavam com os seus passos que caminhavam para a escuridão. Naquela noite, não quis confraternizar com seus colegas. Não havia o que comemorar. Estava farto de tudo. Caminhou por um longo tempo até embrenhar-se em uma trilha que subia uma montanha coberta de pinheiros. O luar filtrado pelas afiadas folhas bastava para indicar a rota de fuga.
Uma pinha se desprendeu, acertando a cabeça de Nomura. "Maldição!", o grito reverberou por entre os pinheiros, enquanto Nomura apanhava a pinha e a lançava para longe. "Ploc". "O que é isso?".
Ruínas de um antigo templo se arrastavam por entre as árvores. O lintel do portal xintoísta estava ao chão, enquanto as colunas teimavam em se manter de pé, mesmo que em curvados ângulos.
Havia silêncio naquela noite, um silêncio que calava até o som do coração do ator.
Curioso, Nomura explorou o estranho achado. Revirou algumas pedras, levantou madeiras apodrecidas. O que estaria procurando? Não sabia, apenas agia por instinto, como se o destino o tivesse conduzido até ali. "O quê?".
Uma caixa laqueada. Ao contrário de tudo o que havia naquele local, aquela caixa estava muito bem conservada. O altar em que ela estava depositada já havia se esfacelado. Nomura a abriu.
Uma máscara.
Sob a luz do luar, a face do demônio se tomava suave. Mesmo com dentes pontiagudos, o sorriso lhe pareceu simpático. Os olhos esbugalhados vertiam sinceridade. Era o rosto de um demônio, mas era um rosto atraente. Tentador.
"Talvez seja um sinal", Nomura sorriu. "Esta só pode ser uma antiga máscara de teatro Nô. Talvez, uma máscara usada até em rituais xintoístas".
O diabo concordava com Nomura.
"Demônio, quero ser respeitado. Aliás, quero mais... Quero ser admirado! Agora compreendo o que tudo isso significa. Devo tentar novamente, apesar de tantas vezes já ter sido rejeitado, me tornar um respeitável ator de Nô. Com esta máscara, conseguirei!", Nomura ergueu a face do demônio, cujos olhos brilharam. Deitou-a sobre o próprio rosto. Adormeceu entre as ruínas.
"Há um preço a pagar".
"Para ser admirado, aceito qualquer preço".
O demônio sorriu.
***
Nomura despertou, com a máscara sobre o rosto.
Amanhecia.
Assustado, lançou a carranca para longe. "Como?". Na noite anterior, havia colocado a máscara no altar, agora, ela o assombrava em sua face. Olhou á volta. A manhã já invadia as frestas do cômodo.
Havia sobrevivido mais uma noite.
O sacerdote do templo em que Nomura estava hospedado deslizou a porta. Trazia uma bandeja com chá e bolinhos. Olhou para o chão e viu a máscara, com a face voltada para baixo.
— Vejo que já reencontrou seus demônios... Ontem à noite, alguém invadiu o templo — o sacerdote sorriu.
— Perdoe-me, eu estava fora de mim — Nomura envergonhou-se.
— Por que queria se livrar de sua máscara? — perguntou o sacerdote.
— Estou cansado... Desde que a encontrei, não tenho tido paz.
— Curioso — disse o sacerdote, enquanto despejava chá na tigela.
— Estou enlouquecendo... A máscara está me dominando, mal me reconheço no espelho.
— Você não é o único. Neste mundo de aparências, todos vestem máscaras.
Nomura não compreendia.
— Você passou a usar a máscara para impressionar uma garota, não é? — o sacerdote entregou a tigela de chá.
Não houve resposta.
— Como sei? Normalmente, começa assim. Usamos uma máscara para agradar a quem amamos. Certamente, a máscara de um demônio não seria a minha primeira escolha, mas... — o sacerdote balançou a cabeça.
Nomura segurava a tigela, esperando as próximas palavras.
— Pegue um bolinho — o sacerdote ofereceu.
Nomura aceitou, pegando o menor bolinho do prato.
— Por que pegou o bolinho menor? Não queria o maior? — o sacerdote perguntou, pegando o maior de todos.
— Sim, mas peguei o menor, por educação — respondeu Nomura.
— Neste caso, sou mal-educado — o sacerdote gargalhou, cuspindo migalhas entre os dentes.
"Que sacerdote estranho", pensou Nomura.
— Você me acha estranho por não me comportar como um sacerdote, não é?
— Sim.
O sacerdote caminhou até a máscara e a apanhou.
— Isto não passa de um pedaço de madeira. O demônio que teme não está aqui, mas dentro de você.
— Mas foi ela que me deu fama.
— A fama veio de seu talento.
— Não tenho talento. Antes, eu era apenas um ator secundário de Kyogen, um palhaço.
— Naquela época, você não tinha talento?
— Não, pois tudo o que fazia no palco saía naturalmente. Eu não precisava fingir nada e se não precisava fingir, não precisava ter talento para...
— Para mentir? — o sacerdote emendou.
— Aonde quer chegar?
— A questão é: aonde VOCÊ quer chegar?
— Eu...
— Nomura, você não precisa usar uma máscara para que as pessoas gostem de você. No fim, as pessoas acabam se afeiçoando á sua máscara e não ao que está atrás dela. Se quer mesmo ser admirado, seja o que você é de fato. Seja verdadeiro.
— Há muito tempo não sei mais o que é isso. Parece que interpretei a minha vida inteira...
— Para ser feliz, basta ser sincero naquilo que faz — sorriu o sacerdote.
— Ser feliz...
Sim. Ele havia sido feliz. Não precisava de uma sorridente máscara para demonstrar a própria felicidade.
Pouco tempo depois, Nomura subiu ao palco, de meias amarelas. E enquanto toda a plateia ria, Nomura ria junto... de cara limpa.
Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.
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