quinta-feira, 19 de março de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Telefone)


- O senhor é que é o senhor mesmo?

- Como?

-  Estou perguntando quem é o senhor, afinal.

- Evaristo Pestana de Matos, seu criado.

- Isso estou vendo na carteira de identidade. Mas o talão de inscrição diz Abel Setembrino de Matos.

- É meu avô paterno.

- Então fala pra seu avô vir ele mesmo, trazendo a carteira.

- Isto eu não posso falar não senhor.

- Não pode por quê?

- Porque ele já é falecido desde 1952.

- Se já é falecido, nada feito. A inscrição está cancelada.

- Cancelada como, se ele foi chamado pela Companhia no jornal de hoje?

- Olha, moço, a Companhia chamou na suposição dele estar vivo. Não estando, fica sem efeito a chamada. Compreendeu?

- Compreendi não. A Companhia chamou, tá chamado. Eu vim em nome de meu saudoso avô pagar a primeira cota do telefone que ele pediu há 24 anos, quando eu era menino de colo, aliás afilhado dele.

- O senhor está é brincando. Seu avô não precisa mais de telefone.

- Mas preciso eu, que sou neto dele, será que o senhor também não mora? Este talão aqui foi conservado pela família durante  um  quarto de século. Meu avô, sentindo uma dor do lado esquerdo, chamou meu pai  e disse: "Etelberto, tira da gavetinha do criado-mudo minha inscrição de telefone e guarda ela com cuidado. Não pude deixar um aparelho para você, mas deixo essa esperança. Não vende a inscrição por dinheiro nenhum, meu filho. Satisfaz minha última vontade". Disse e morreu.

- É comovente, mas...

- Espera aí. Tem mais. Meu pai guardou o papel 13 anos e  também embarcou, coitado. Na hora de despedida, me fez a mesma  recomendação. Estou cumprindo um mandado de família, uma coisa sagrada para mim. Já lhe dei o talão. Me dá meu telefone, cidadão.

- Esse talão é de Abel Setembrino de Matos, homem!

- Eu sei. Meu avô, pai de meu pai. Me tocou como bem de família.

- Tocou como? Por acaso entrou em inventário, o senhor tem formal de partilha provando isso?

- Formal eu não tenho, mas tenho o talão. Quem mais senão eu podia ficar com o talão, se sou filho único de filho único de meu avô?

- Eu sei lá se o senhor é único ou se faz parte de escadinha. Nem interessa à Companhia saber quem é filho único de quem. Sabe que mais? A conversa já esticou demais. Vou chamar o próximo.

- Me atenda antes, por favor. Não vai me obrigar a ir para a televisão reclamar o direito de meu avô, nem contratar advogado. Pois eu vou, eu contrato.

- Faça o que quiser.

- O que eu quero é o telefone de meu avô, pedido em 1943!

- Retire-se, o senhor está enchendo!

- Hein?!

- Está enchendo, já disse!

- Estou é me sentindo mal... Uma coisa do lado  esquerdo..,  uma nuvem .. . uma vertigem. A gente esperando  desde  a  Segunda  Guerra Mundial, e na hora de receber o telefone, ah meu Deus, o Senhor me chama para o seu seio... Não faz isso comigo, deixa pelo menos eu tomar  um táxi, ir em casa entregar a meu filho Tonico este talão... Quem sabe se ele um dia...

Cai.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Caminhos de João Brandão. RJ: José Olympio, 1976.

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