sábado, 28 de março de 2020

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 5


DEDICATÓRIA

Dedico  este  livro  aos  irmãos  da   América   e  do   Mundo,
não importa que cruzem as pernas nos "pagodes" exóticos
ou sigam a palavra de Confúcio no templo de papel e de bambu;
que subam aos minaretes, se curvem beijando a terra,
ou simplesmente se ajoelhem no palácio de vitrais e incensos;
que dispam a palavra de Cristo de púrpuras e de ouros,
ou que sigam sem Deus, a procurá-lo nos livros...

Dedico este meu livro a todos os irmãos da América e do Mundo,
negros  ou  brancos,  amarelos  ou  vermelhos,  azuis   ou  roxos,
altos ou baixos, gordos ou magros, louros ou castanhos;
nos que ainda não morreram e aos que ainda poderão vir;
aos das planícies e dos campos, aos das florestas e das montanhas,
aos dos gelos e dos desertos,
aos das aldeias e das cidades,
aos dos faróis e aos da solidão,
aos dos navios, dos aviões ou dos subterrâneos,
a todos os homens, sem a menor distinção,
basta que creiam ainda na Vida e em nós mesmos.

Por isso escrevi este livro
como se abrisse uma veia, para o sangue aliviar o coração;
como se colhesse um fruto para o desejo inábil;
como se trouxesse água na mão, para a boca sedenta e empoeirada;
como se escrevesse sem palavras, e pudesse chegar a todos os ouvidos
e a todas as consciências
sem tradução...
Por isso escrevi este livro. Como quem acende uma lanterna
para descobrir que não está perdido...

Não se admirem irmãos, se as suas letras tiverem a cor do meu sangue,
porque elas são o meu sangue que vos ofereço,
são uma doação que faço aos que ainda creem que vivem,
mesmo aos que não poderão se refazer,
porque nunca sabemos os que resistirão...
              
Que este livro, pois, possa ao menos ser útil como o sangue,
como o ar, ou como o pão,
e possa prolongar algumas esperanças
confortar alguns momentos finais
e salvar alguns desesperos...

Que ao menos, chegue a tempo, para alguns…
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DEPOIS
    (A Erich Maria Remarque - 1939)
 

E as ruas se encheram de inválidos e mutilados
com seus estranhos vultos...

E as mulheres de preto, como espectros insepultos
      de maridos,
  de filhos,
de pais,
de noivos
e namorados,
levavam velas acesas dentro dos olhos parados...

E os caminhos caíram nas pontes desconjuntadas,  
e os campos se encheram de feridas e cicatrizes,
e as árvores voltaram para os céus a angústia  
das raízes!

E os oceanos levantaram ondas asmáticas
como se dentro delas lutassem as ânsias
de todos os afogados à procura de ar!...
E os céus se cobriram de véus negros de fumo
como quem venda os olhos
para não olhar!

E brotaram cidades de sombras e cruzes
nas ruínas das cidades viradas do avesso,
... pelos ermos, descampados...

E as chaminés pararam de fumegar
sobre os telhados,
e após o sobressalto das noites e das correrias
todas as portas se cerraram sobre o gemido dos vivos
como pálpebras frias! . . .

E as igrejas se encheram de criminosos reincidentes
e arrependidos
com as almas pesadas como as águas salubres,
se encheram dos homens que pensam que creem
em Deus!

E as vitrinas da Vida se esvaziaram
para encher as vitrinas dos museus!

E em cada esquina ficou um lenço tinto de vermelho
com a cruz dos hospitais,
como a clamar aos homens que batiam com os cascos:

_ " Paz !... "
.......................................
E o homem de galões, com o peito cheio de insígnias,
e medalhas,
tendo ainda no ouvido o ruído das metralhas
e o roncar do canhão,

- saiu correndo, louco, a gritar pela Pátria !

Queria encontrar a PÁTRIA
para pedir perdão!
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DIANTE DAS CRIANÇAS NUAS...
  
  Já pensaste num mundo sem vagabundos e indigentes
onde não seremos rebanhos porque teremos intacto o pensamento
e o coração?

Já pensaste num mundo onde não nos envergonharemos
dos nossos lares e dos nossos filhos,
e onde não haverá irmãos famintos e maltrapilhos?
........................

Bendigo a tua inconsciência por que nada pensaste
diante destas crianças descalças e nuas,
- não, não podes compreender meu sofrimento
nem sabes ler o libelo que eu vejo escrito nas ruas!
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DISCURSO
      (A Cássio Chaves- 1944)
  
Senhores,
eu vos peço um segundo de silêncio
ao menos um segundo,
pelos que sofrem, lutam e morrem
pelos homens e pelo mundo...

Por todos os que se levantaram, e acorreram, e seguiram
novamente crentes e esperançosos
e abandonaram suas terras, seus lares, seus arados,
e morreram com a liberdade nos lábios entreabertos
e silenciosos;
pelos que, sem pão, vagavam famintos
- humilhados pelos homens que passavam indiferentes
e agressivos;
pelos que, sem lar, nunca encontraram a mesa posta
nem crianças correndo a gritar nas calçadas;
pelos que, sem teto, andaram sem destino,
namorando as estrelas e invejando as casas todas
à margem das estradas...

Pelos que nunca tiveram pais, nem mãos amigas
descobrindo um rumo ou servindo de amparo;
pelos que nunca puderam amar, e invejaram os próprios cães
quando o amor é tão caro;
pelos que sem segurança e meios, sem qualquer instrumento,
esqueceram certo dia o próprio pensamento
e andaram sempre ao léu,
a arrastar os pés na terra
e a olhar, em vão, o céu. . .

Senhores,
eu vos peço um segundo de silêncio
por eles que acorreram, e seguiram, e se levantaram,
e foram lutar por um mundo melhor,
- por eles que infelizmente não voltaram
ou felizmente - quem sabe? - se a volta ainda for pior...

Senhores, eu vos peço silêncio, ao menos um segundo,
por eles, que como nós, acreditaram nos homens,
acreditaram no mundo...!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

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