sábado, 7 de março de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Glória)


— Meu filho é artista de televisão, contando o senhor não acredita. Eu mesmo às vezes penso que é ilusão. Com oito anos, imagine. Estava brincando na pracinha lá da vila quando passaram uns homens e olharam muito pra ele. Meu filho, não é pra me gabar, mas é uma lindeza de Menino Jesus, aí um dos homens falou assim pra ele. Quer fazer um teste, ó garoto? O que é teste? ele respondeu. Aí o homem explicou, não sei bem qual é a explicação, levaram ele pra um edifício na cidade, tiraram um bocado de retratos dele, depois falaram assim: Você foi aprovado. Aí ele se espantou: Mas eu não fiz exame, que troço é esse? Não é nada de exame não, eles responderam, você foi aprovado pra fazer um comercial, tá bem? Ele neca de saber o que é um comercial, nem eu, mas agora eu fiquei sabendo, é uma coisa à toa, a pessoa nem precisa falar, fica só fazendo uma coisa, comendo doce de leite, devagarinho, com uma carinha alegre, quando acaba passa a língua nos beiços, assim, olha, e pisca o olho, ele é tão engraçado, antes de acabar de comer ele já estava fazendo isso, um negócio. Aí mandaram ele de volta pra casa, não, antes falaram assim pra ele: manda seu pai aqui na agência receber o cachê. Ele ficou espantado, falou assim: Que troço é esse? Eles responderam. É tutu. Aí ele baixou a cabeça e respondeu baixinho: Eu não tenho pai. E mãe você tem? Ele respondeu que mãe ele tinha, e levantou a cabeça. Então manda ela aqui, mas o garoto é esperto, deu uma de sabido: Eu mesmo não posso receber? se fui eu que fiz tudo sozinho. Não, você não pode, tem que ser sua mãe, diz a ela que venha das duas às quatro, trazendo carteira de identidade. Bonito, e eu que nunca tive carteira, já pelejei pra tirar uma, dei duro, pedi pro compadre Julião me quebrar esse galho, compadre explicou que carece antes tirar certidão de nascimento, essa é muito boa, então a gente tem que provar que nasceu, eu não estou viva com a graça de Deus e forte e trabalhando? O pior é que nem sei se fui registrada lá em Pilão dos Palmares, chão do meu nascimento, não tenho parentes neste mundo, só tenho no outro, e nem a poder de oração consegui até hoje tirar o papel da tal certidão, afinal eu falei assim pro compadre: Deixa pra lá, sem carteira vivi até hoje, sem ela vou viver até Nosso Senhor me fechar os olhos. Vou lá na agência assim mesmo. Larguei meu serviço. Fui. Tinha um mundão de gente, eu não sabia quem é que podia me atender, andei rolando de uma sala pra outra, até que afinal um cara de bigodão, atrás da parede de vidro com um óculo no meio, falou assim: É comigo, trouxe a carteira? Eu expliquei que carteira eu não tinha, mas sou lavadeira muito acreditada na Zona Norte, muitas madamas da rua Conde de Bonfim podem atestar que eu sou eu mesma e mãe de meu filho, há vinte e cinco anos que trabalho de lavar roupa. Ele abanou a cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho ordem de pagar sem identidade. Mas o meu filho trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o trabalho dele, tanto que prometeram pagar um tal de cachê, como é que pra pagar a ele é preciso a carteira de outra pessoa, o senhor acha isso direito? Ele não respondeu nada, tornou a abanar a cabeça e eu fiquei matutando: O que tu vai fazer pra sair dessa, Clementina da Anunciação? E comecei a chorar. Aí eles me viram chorando, ficaram com pena de mim, um barbudo que passava disse assim pro bigodão: Paga a ela, Reginaldo. O bigodão resmungou: Tá legal, e me deu um papel passado em três folhas iguais, pra eu assinar nelas todas. Aí eu disse: O senhor me desculpe, mas eu não sei escrever, a cabeça não dá. Então nada feito outra vez, o bigodão respondeu. Aí, eu não tinha mais vontade de chorar e disse assim pra ele: Escuta aqui, moço, quanto é que meu filho tem pra receber? Ele respondeu: cinquenta cruzeiros. Ah, é isso? respondi. Pode ficar pra agência. Perdi meu dia de trabalho, gastei trem, gastei ônibus, andei a pé neste solão, não vou me chatear por causa dessa mixaria. Um cara que estava escutando falou assim: A senhora vai jogar fora esses cinquenta mangos? E daí? respondi pra ele. Meu filho vale muito mais, a gente não fica mais pobre por causa disso, ele agora é artista, amanhã se Deus e a Virgem Maria ajudar, vai ganhar milhões. Nem precisa ganhar, só o orgulho que eu sinto por ele ter passado no teste! Saí de lá com esse orgulho bonito no coração, meu filho é artista, meu filho é artista, ia repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados mas eu nem dei bola, fui pra casa e ligo a televisão o dia inteiro, trabalho vendo ela, até chegar a hora de meu filho aparecer no comercial comendo doce de coco. Pobre tem televisão, na vila todos têm, vai ser um estouro quando meu boneco aparecer e piscar o olho, então isso não vale mais que cinquenta, que quinhentos ou cinco mil cruzeiros, ou todos os cruzeiros do mundo?

E seu rosto enrugado cintilava de glória.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

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