domingo, 15 de março de 2020

J. G. De Araújo Jorge (O Canto da Terra) 2


APARÊNCIAS...
    ( Ao Angelo Ruiz)
  
Aquele homem que vês, tão maltratado e rude,
olhar de boi castrado carregando a canga,
é uma pedra de raro e infinito valor...
A miséria é a sua ganga,
por isso não lhes vê a beleza interior...

Aquele outro que passa aprumado e elegante
que a riqueza do traje e do trato realça,
parecerá talvez um límpido brilhante...
... mas é uma pedra falsa...
- - - - - –

AS CHAVES...
   (À Alberto de Figueiredo)

Felizes os homens que tem as chaves
porque só encontram portas abertas...

Como podem tantos homens dormirem sossegados e felizes
de portas fechadas,
quando essas portas se fecham para tantos homens
que ficam sempre ao relento
e nunca podem entrar?

Neste mundo de tantas portas,
quando teremos cada um, a sua chave,
e a sua hora de voltar?
- - - - - –

ASAS  DO  BRASIL
   (À Força Aérea Brasileira e ao Correio Aéreo Militar )

Ei-las juntas no espaço, - asas em revoadas
cirandando na altura ou planando no azul,
desdobrando nos céus invisíveis estradas
e acordando a cantar o sono das quebradas
sob o signo estelar do Cruzeiro do Sul.

O seu canto viril é o ronco dos motores -
hino estranho e sem letra a ressoar nos céus!
Asas fortes, irmãs das asas dos condores,
herdeiras do destino dos conquistadores
que não buscam no entanto a guerra e seus troféus!

Outra é a sua missão, mais nobre e mais humana,
devassando o horizonte e procurando o além:
- seu vôo, num abraço, o mundo inteiro irmana,
e a Pátria, sob a sua sombra soberana
trabalha mais feliz sem recear ninguém.

Marcharão pelos céus como novas "bandeiras"
e fundarão cidades para além das serras,
encurtando os caminhos sobre as cordilheiras
serão vivas mensagens sempre alvissareiras
chegando ao coração das mais longínquas terras.

Ressurreição de heróis, bravos itinerantes,
missionários de credos de brasilidade,
sobrevoam as plagas verdes mais distantes
e dominando o espaço em todos os quadrantes
asseguram a eterna força da Unidade.

Asas moças da Pátria, símbolos bravios
de ímpetos juvenis e entusiasmos sagrados,
lá se vão pela altura a acompanhar os rios
e a lançar sobre a terra audazes desafios
na canção dos motores, fortes, sincopados.

Vendo-as, por esses dias de ânsias e de crises,
em formações, no azul, serenas e velozes,
penso no seu futuro e em suas diretrizes:
- agora, trabalhando em comunhão, felizes,
depois, em plena guerra, em confusão, ferozes!

Era um sonho de Paz o que sonhou Dumont
libertando-as assim, mais alto que as montanhas;
ele, o gênio imortal, humaníssimo e bom
há de ouvir do Infinito o ronco surdo e o som
dos motores batendo em pulsações estranhas.

Corações do Brasil nos rudes peitos de aço
dos aviões, que em cadência, alteiam-se no espaço,
e lá se vão nos céus, na simbolização
de um povo forte e bom que crê na Paz do mundo,
e no Amor, que no ventre azul do céu profundo
gerou as asas livres do primeiro avião!
- - - - - –

ATO DE FÉ
   ( A Sílvio Elia)

Não sei como os homens tiveram tempo de criar os deuses
vestir os santos
e erguer mil templos para a religião...

Há tanta estrela no céu!
Há tantas flores nos ramos!
Se queres ajoelhar-te... ajoelha-te e prosterna-te
ante aquela semente que brotou do chão!
- - - - - –

BRINQUEDOS
   (A Nicolau Antonio Noé)  

Ali, em frente ao grande palacete,  
nas grades de um jardim dependurados,  
como pardais nos fios descansados,  
- os molecotes da rua      
de olhos vivos,  
ficam fitando a festa dos brinquedos  
como quem olha um mundo imaginário:  

- tambores... bicicletas...aeroplanos
soldadinhos de chumbo e de madeira,
com que passam brincando a tarde inteira  
os filhos de um senhor, milionário  
      
Olhos vivos      
gulosos e distraídos,  
à alegria das crianças mais felizes  
eles riem também, ingenuamente,
- da tosca bola de meia,
do papagaio de papel da venda,
completamente esquecidos,
- completamente...

Depois,
quando as amas carregam para dentro
os meninos ricos
que não apanham sereno,
eles seguem com os olhos os brinquedos:
- os soldadinhos que um vai carregando...
- a espada que aquele outro acena no ar...
- o tambor que um terceiro vai tocando...
E a meninada da rua fica olhando... fica olhando...
e vê tudo fugir ao seu olhar...
..................................................

Hoje... depois que os anos vão rolando
sobre injustiças e desigualdades
sei que tudo na vida é mesmo assim:
- há os que vivem trepados pelas grades
e os que podem brincar pelo jardim! . . .

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

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