Há uma grande agitação no vestiário feminino. As garotas que vêm de Riversul trocam às pressas a roupa que vestem pelo uniforme simples, clássico e bonito do coral: saia azul-marinho, blusa branca, sapatos vermelhos e um laço também vermelho amarrado à gola.
Eu as observo, divertida. Uma garota engordara e outra emagrecera. Já vestidas e não se sentindo a cômodo, resolvem trocar as saias. Despem-se e tentam vestir-se, uma com a saia da outra. Pior a emenda! Despem-se novamente e voltam a vestir-se como estavam, Duas meninas queixam-se dos sapatos que lhes maltratam os dedos... mas tudo isso em meio a boas risadas e exclamações divertidas. Uma farra!
Pelas dependências do Clube Fronteira encontro velhos amigos. Cumprimentamo-nos com efusão. É sempre gratificante vê-los novamente. Há uma grande expectativa. A apresentação do Coral Santa Cecília promete ser sensacional e a sala está repleta.
Começam a entrar os cantores, em fila, sob estrondosos aplausos. O Maestro Batista é o último a passar. Para ele, salvas mais imponentes ainda. As coristas se ajeitam na posição indicada pelo Maestro. Ele faz breve e interessante exposição sobre música coral. Mostra o que convém e o que não convém numa apresentação vocal. Depois volta-se para o grupo e de maneira quase imperceptível dá-lhes a tonalidade.
Então o milagre acontece. Como se fossem um único instrumento tangido pelos dedos do Maestro, aos movimentos de suas mãos, sopranos e baixos, contraltos e tenores desprendem suas vozes maravilhosas, ora em pianíssimo, ora em meio forte, depois e crescendo, e finalmente num forte ou fortíssimo de arrepiar até os nervos da gente, de comoção.
É uma completa sinfonia com seu adagio, seu allegro, seu rondo e seu scherzo. É a leve música da Renascença; é a doce Ave-Maria; é a missa monumental, é a inconfundível cançoneta italiana; é a sentimental música latino-americana; é o encantador folclore brasileiro, nas asas do vento a se "imbalançá".
É o fragor de uma tempestade. É o trinar de um passarinho. E todos os sons que as vozes do universo repetem a cada dia, desde a cascatinha humilde que despenha no riacho até o vagalhão que se esfacela às fragas rijas do oceano... É mais que magnifico. É divino!
Estamos extasiados ao final, e os aplausos são intermináveis. Descemos a escada e nos encaminhamos para a mesa onde será servido um suculento arroz-com-frango acompanhado de salada e de uma farofa deliciosa.
E mesmo ali, todo mundo com muito bom apetite e servindo-se à vontade, o espírito da música não abandona o ambiente. Cantam alguns, lá na ponta da mesa. Aqui no meio, o Maestro faz dueto com um dos tenores do coral. Até eu me encorajo e faço trio com minhas sobrinhas. E todas essas manifestações espontâneas e isoladas são muito aplaudidas.
Por fim, alguém pede uma música de sua preferência e o Maestro não se faz de rogado. E mesmo sentado, todo mundo tendo à frente um prato cheinho de ossos, ele dá o tom e a turma canta ainda três números, o último dos quais é o belíssimo e arrebatador Salmo 150, de Ernâni Aguiar.
Sou insaciável em matéria de boa música. Fico querendo mais... e acho que os outros também. Mas a festa chega ao fim. Ainda há quarenta e cinco minutos de estrada para o pessoal de Riversul.
Aqui fora está um tanto frio, mas o céu escuro está muito estrelado.
Que façam boa viagem o Maestro e seus companheiros!
(Tribuna de Itararé - 26/04/87)
Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
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