Porque suas palavras vieram voando no brilho dos olhos, correndo nas batidas do coração, deslizando no suor da pele, cantando na carícia de todo o corpo dele, eu me fiz nuvem e desfiei-me ao seu chegar, aceitei-me chão e espichei-me ao seu retorno, constituí-me árvore e me deixei lamber pela sua maciez, assumi-me natureza e atentei para a sua melodia.
Contou-me tudo, todo aquele passado, aquele tempo curto em que se deixou enfeitiçar pela beleza solta que passeava pelas ruas. E conversamos longas horas, amargurados de sermos tão vulneráveis, maravilhados de podermos renascer das cinzas. Compreendeu e compreendi que paixão é morbidez, fogo de artifício, às vezes fogo fátuo. Não vai além do voo mais alto, não suporta gotícula de luz. Rosana era um fantasma de braços estendidos ao tempo. Não se manteria ao menor terral, ruiria como a marmota do arrozal.
A sedução de uns olhos de serpente pode encantar qualquer passarinho perdido, mas não ata nenhum pássaro de voo mais arrojado. Rosana era essa beleza insuportável que laça qualquer cristão solitário.
A quem atribuir a culpa pela queda dele, se não somos o primeiro casal? Ao contrário, mais um nesse enxame do século XX.
Coitada de mim que não sabia o fogo que ardia no peito dele e nos queimava aos três como a bruxas de repente rodeadas de batinas. E vão dizer que mulher é bicho astuto, possuidor de não sei qual outro sentido, encarnação do diabo. Ele, sim, foi mais inteligente do que eu e me pôde esconder sua loucura até que seu próprio desengano o fez revelar-me todo o seu transe. Não por compaixão de mim ou por remorso, mas porque anteviu a fragilidade daquele amor nascido do sonho.
Ele queria a mulher imaculada, bela e terna, eternamente jovem e infinitamente amorável. E construiu sua quimera a partir do primeiro corpo belo que encontrou adiante.
No começo veio o acaso de ver diante de si, risonha, calorosa e esvoaçante, aquela fêmea a um tempo comum e singular. Depois foram os risos, as conversinhas fúteis, cigarrinho praqui, cafezinho prali, caronas, chopes e o fogo corroendo as entranhas dele, devassador e tirano. Cuidou, bebia para recriar a imagem dela na retina acesa, dormia pouco para mais pensá-la, sonhava muito para mais senti-la dele. E me chamava de Rosana no meu ouvido com a língua ardente e eu entendia “querida”. E me olhava estranho da cabeça aos pés e eu suspeitava o remoçar da paixão antiga. E me abraçava tentacular e poderoso e eu pressentia um filho em seu desejo de monstro. E me beijava louco e eu desmaiava de ternura. E nunca compreendi amor tão desleal, tanta astúcia ou tanta necessidade de enganar-se.
Ele era todo um espoucar de fogos, intensa claridade a sobrevoar-me a vida, constelação em constante pisca-pisca. Esperava tudo dela, o que não fui, o que não sou. A dos bosques, fada verde, deusa rebrilhante. Misto de mito grego e americano. Amor que nunca se esvai, taça inquebrável, voz de veludo.
Ele era só a luz que banha a terra, claridade que me circundava a fronte, incêndio queimando os campos. Tudo o que nunca foi, tudo o que não é. Porque somos mulher e homem, somos daqui desta cidade de esgotos e ratos, de assassinatos e fome, de mansões e choupanas, de cachaças e champanhes, sangue e ossos que se buscam, caminhantes incertos dos becos escuros, o copo que se quebra na cozinha, o grito que salta dos dentes na hora necessária.
Talvez eu seja mesmo astuta e disso não saiba. Quem sabe, eu sabia de tudo e não dizia nada para não fazê-lo explodir no alto e esborrachar-se feito sapoti que cai do galho ou apagar-se em sua escuridão? Porque não me revoltei quando tive que ouvir aquela ficção de amor tão bem bordada. Simplesmente ouvi e analisei com ele o transe daquela paixão tão majestosa. Não havia nada a lamentar nem a vingar. E ele não teve vergonha de escancarar a alma nem eu de encostar meus ouvidos no seu peito roto. Ia eu brigar numa guerra acabada? Aceitei a derrota dele como lição. Não como castigo, que ele não me desamou. Nem Rosana era a inimiga minha ou dele. Era objeto, palha que se joga ao fogo que nos incendeia. Conheci-a e vi-lhe a candura incrustada no bonito de seus olhos. Somos quase amigas porque sei das águas que ela lançou sobre o peito dele, amargurada de ser tão dupla assim – palha e água. Se culpa tem, é de ser ninfa até aos olhos meus. E se a culpa é dele, é por ser louco e apaixonado pela vida.
Mas é dia e o fogo é morto nos meus campos.
Fonte:
Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986.
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