sexta-feira, 20 de março de 2020

Dorothy Jansson Moretti (Índios e Lágrimas)


Em conversa com minha vidinha, dizia-me ela    finalmente, uma amiga de sua filha vencera a resistência dos pais e se casara com um advogado que eles repudiavam por ser de origem indígena.

O preconceito fez-me lembrar de um fato que aconteceu quando eu estudava em colégio interno, e eu o relatei com minúcias à minha vizinha.

Certo dia, apareceu no pátio, vindo pela estrada que ligava o colégio à cidade, uma distancia de quatro quilômetros, um indiozinho de uns catorze anos. Tinha um nome lindo e sonoro: Itáiro Igaiara. Coitadinho! Não se sabia o quanto ele havia andado, mas estava coberto de poeira, a roupa em frangalhos e os cabelos semi-longos sujos e cheios de piolhos! Deram-lhe "aquele" banho, vestiram-lhe roupas limpas, cataram-lhe os parasitas, e permitiram que ele ficasse no colégio, estudando em troca de pequenos serviços nas hortas, compatíveis com sua capacidade física.

Itáiro, não lhe bastasse a timidez, era menosprezado por quase todos os colegas masculinos e femininos. Eu tinha pena dele e tratava-o sem preconceito, conversando e procurando fazê-lo sentir-se mais integrado entre nós.

As coisas, porém, começaram a tomar um rumo que eu não previra. Ele tentou levar a amizade para o terreno de um namorico. Eu tinha só treze anos, e aquilo me pareceu uma coisa horrível! Fiquei indignada e passei a trata-lo com estudada indiferença. O pobre sentiu a virada e ficou tristinho, mas eu estava irredutível. Não nos falamos mais.

Chegou o fim do ano e em meio aos preparativos para as festas, Itáiro, por intermédio de Dona Anita, nossa governante, conseguiu conversar comigo. Pediu-me desculpas. Disse que não queria voltar para Mato Grosso, de onde viera, deixando-me magoada com ele. Profundamente tocada por sua humildade, eu "perdoei" Itáiro, e continuamos amigos novamente.

Enquanto eu contava esse caso à minha vizinha, não percebi que meu filho, que tinha seis anos, estivera atento à nossa conversa. Eu esqueci o assunto. Mais tarde, notei que Paulinho, sempre tão vivo e tagarela, estava meio macambúzio, mas não prestei muita atenção àquilo. No fim da tarde, muito quieto, de deitou-se e cobriu a cabeça. Fui ver o que havia. Estava doente? O que estava sentindo? Mas ele... nada!

À noite, minhas amigas Noemi e Elivir apareceram lá em casa. Contei-lhes que o Paulinho não estava muito bom. Elas foram vê-lo. Elivir achou-o muito quente e vermelho. Colocou-lhe o termômetro. Normal, mas ele não falava nem mesmo com elas de quem gostava tanto e que o agradavam demais.

Ficamos as três preocupadas, e eu resolvi obrigá-lo a dizer-me o que se passava. Cansado com minha insistência, ele finalmente reagiu, mas num pranto desesperado...

'*Buááá...”

"Mas o que é isso, meu filho. O que é que você tem?"

Chorando e fungando muito, a resposta, toda entrecortada, veio afinal:

"É... por causa... do índio...”

– "Índio? Mas que índio?"

Eu estava aturdida. Não tinha a mínima ideia do que ele queria dizer.

Soluços:

"O índio que queria casar com você,,, e você não quis... Ele usava pena, mamãe?"

Toda a minha preocupação acabou-se. Mentalmente reconstituí a cena da maneira como Paulinho a imaginara: um índio todo enfeitado de penas, querendo casar comigo e eu dizendo que não... Deu-me uma vontade louca de rir, e a custo consegui conter-me.

"Mas meu filho? A mamãe tinha só treze anos e o índio catorze. Não podíamos nos casar.”

Ele continuava num choro desconsolado. Abria as comportas retidas durante um dia inteiro. Eu mal sabia o que fazer. Muito menos Elivir e Noemi que ignoravam absolutamente o que se passava. Tive que repetir-lhes a história, depois, na cozinha, e elas riram a valer, às escondidas de Paulinho, para não magoa-lo ainda mais. E ele chorava, chorava…

Finalmente ocorreu-me uma ideia;

"Filho, mas e o papai? Se eu casasse com o índio, você seria filho do índio e não do papai Paulo... Você queria?"

Acalmando-se um pouco e ainda fungando muito, ele me olhou assustado.

Insisti:

"E então... onde é que o papai ficava nessa história?"

Agarrado ao pai do jeito que ele era, acabou por se conformar. Secaram-se as lágrimas e, como acontece em qualquer criança, dali a instantes já estava alegrinho, brincando com Noemi e Elivir, feliz da vida e esquecido - pelo menos momentaneamente ~ daquele índio de penas que tanto o fizera "penar"...

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.

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