terça-feira, 10 de março de 2020

Fernando Pessoa (Poemas de Amor) 1


O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala; parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
(1928)
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A tua voz fala amorosa.
Tão meiga fala que me esquece
Que é falsa a sua branda prosa.
Meu coração desentristece.

Sim, como a música sugere
O que na música não 'stá?
Meu coração nada mais quer
Que a melodia que em ti há...

Amar-me? Quem o crera? Fala
Na mesma voz que nada diz
Se és uma música que embala.
Eu ouço, ignoro, e sou feliz.

Nem há felicidade falsa,
Enquanto dura é verdadeira.
Que importa o que a verdade exalça
Se sou feliz desta maneira?
(22.1.1929)
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Deixa-me ouvir o que não ouço...
Não é a brisa ou o arvoredo;
É outra coisa intercalada...
É qualquer coisa que não posso
Ouvir senão em segredo,
E que talvez não seja nada...

Deixa-me ouvir... Não fales alto!
Um momento!... Depois o amor,
Se quiseres... Agora cala!
Tênue longínquo sobressalto
Que substitui a dor,
Que inquieta e embala...

O quê? Só a brisa entre a folhagem?
Talvez… Só um canto pressentido?
Não sei, mas custa amar depois...
Sim, toma a mim, e a paisagem
E a verdadeira brisa, ruído...
Vejo-te, somos dois...

Por quem foi que me trocaram
Quando estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares? sorri.

Sorri do teu pensamento
Porque eu só quero pensar
Que é de mim que ele está feito
É que o tens para mo dar.

Depois aperta-me a mão
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram
Quando estás a olhar-me assim?
(12.08.1930)
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INCIDENTE

Dói-me no coração
Uma dor que me envergonha...
Quê! Esta alma que sonha
O âmbito todo do mundo
Sofre de amor e tortura
Por tão pequena cousa...
Uma mulher curiosa
E o meu tédio profundo?
(1931)

Fonte:
Fernando Pessoa. Poemas de amor. RJ: Agir Editora, 2009.

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