— Olha a mulher de preto!
Poucos sabem que se chama Fátima. A maioria nem se interessa por saber se tem nome, sequer. Chamam-na "mulher de preto" e isto basta para que qualquer um saiba a quem se referem.
Tem 39 anos de vida e 14 de Brasil, onde chegou de Portugal, solteira. Nasceu no Vizeu, o que lhe dá ao "s" um sabor de "x", considerado cômico.
— O xenhor xabe que não aprexio exa mania de paxar o dia a olhar pro xéu. Xi o trabalho o chama, que o faxa.
O menino, seu empregado no bar, volta ao trabalho por um momento. Não é tão eficiente quanto o bar precisa, mas custa salário pequeno. E não é dos que gostam de responder às admoestações. De boa paz, o menino.
— Xegura cá a xerveja, m'nino.
No bar, o menino é o único homem, desde que Teófilo morreu, num acidente de ônibus na Rio—Petrópolis, três anos depois do casamento.
Fátima, pelo choque, perdeu o filho que começava a gerar. Esteve à beira da morte. Escapou. Mas ficou mais só do que devia. Não tinha tido tempo de fazer amigos, e o marido, ciumento, sempre evitou associar-se às casas portuguesas e a qualquer clube. Viviam um para o outro. Depois, Fátima viu-se obrigada a viver sozinha.
Na parede do bar, atrás do caixa, o retrato do marido: tripeiro de barba cerrada, azulada, que começava ao pé dos olhos, confundindo-se com os pelos do peito. Tinha feições finas, o marido: um homem bem apessoado. Foi enterrado no Cemitério São Francisco Xavier, onde, todos os domingos, Fátima comparece, levando as flores da saudade. Não chora, todavia. Apenas, triste e solene, deita os cravos sobre o cimento e, após dizer umas poucas rezas, volta ao bar na Rua Salvador de Sá, único patrimônio que lhe ficou.
A mulher de preto. Colarinho fechado, mangas compridas, punhos invariavelmente abotoados, sempre de meias nada transparentes, rosto pálido onde nunca tocaram o ruge e o batom. Faz questão de viver no hábito português do luto eterno. Tem os cabelos escondidos pelo lenço de seda preta que não esquece de atar à cabeça, dando-lhe um jeito de camponesa de Vila Franca do Xira. As pernas, brancas demais, acinzentam-se pelos cabelos que deixa crescer, descuidada, esquecida da vaidade — coisa de gente moça. Imagina-se que nas axilas também os haja.
O bar é pequeno e antigo. São cinco mesas com pés de ferro e tampo de mármore malhado. Cadeiras pequenas, de madeira de lei, fabricadas pelo marido, marceneiro no Porto. Além das mesas, há o balcão onde o mármore, de beiradas comidas e quebradas, serve de pouso aos cálices de cachaça e conhaque ou xícaras de cafezinho.
— Me dá um Cinzano Tinto.
— Acabou. Tem branco, serve?
— Não.
Perde mais um freguês. O negócio não vai bem. Fala-se na desapropriação do bar, para a abertura de uma rua nova, acabando na Presidente Vargas. Nas prateleiras, um fim de estoque.
— Um Dreher.
— Acabou.
Outro freguês para o bar moderno que se abriu na esquina, concorrência desigual. Para ela restam os da cachaça, que dividem a pinga com o "santo" e não economizam palavrões no vocabulário. Já está acostumada aos nomes que escuta. Antes chamava os brasileiros de "Boca Xuja". Agora aceita-os. Deles vem o dinheiro diário.
O menino-ajudante lê a página esportiva do jornal, sentado na caixa de refrigerantes. Ela se aborrece com a inércia do ajudante que não tem a décima parte da sua disposição.
— Eu não te pago para que tu paxes o dia xentado, m'nino. Anda cá a ajudar-me.
Fátima vigia, ensina, comanda, compra, vende, evita.
— Sabe que a senhora, com uma roupinha mais leve, uma blusinha estampada, um penteadozinho maneiro... Não sei não. Tá sozinha porque quer, sabia?
Ela nem sorri, temendo alimentar qualquer esperança sem o menor sentido, impossível mesmo. Desde que o marido se foi, jurou solidão eterna.
— Dois vermutes.
— Xó tem uma dóje. Xerve?
— Não, obrigado.
Vão-se mais dois para beber no bar da esquina. Ah, quanto tempo falta para acabar com tudo isso?
Mora num quarto alugado, em casa de família, com café da manhã e almoço aos domingos. Junta dinheiro. O que consegue economizar, ao fim de cada mês, amealha, sonhando com o dia em que poderá comprar a passagem de volta ao Vizeu, onde tem parentes que escrevem cartas prometendo coisas melhores do que a vida que o bar lhe permite.
— Por que não casa de novo?
Responde ao dono da casa onde mora, com indisfarçável contrariedade:
— Faxa o favor de não me tocar nexe axunto...
Às vezes cora, à simples ideia de nova união. Considera esses comentários um desrespeito ao luto que esfrega na cara do mundo. Então não veem que a uma viúva não se devem falar certas coisas? Temendo a continuação do assunto, volta ao quarto, onde mantém acesa uma lâmpada sobre a imagem de Nossa Senhora de Fátima, sob a qual há um copo com água, molhando um cravo. Os outros onze, da dúzia, deitou-os domingo sobre o túmulo do finado. Amanhã mudará o cravo do copo.
Reza, dorme e trabalha. Sua vida resume-se à conjugação desses três verbos. Não sabe de cinemas ou teatros e mesmo a Copacabana só foi uma vez, passear pela calçada da praia. O mar nunca lhe tocou o corpo.
Hoje é domingo. Está saindo do cemitério, depois de cumprir a tarefa habitual. Há um vento forte que a faz andar tomando conta da saia que, vez por outra, sobe, deixando que se veja o nó no alto das meias, no começo da coxa.
Tem o marido à sua frente, de tanto que pensa nele. Rememora o acidente. Relembra conversas. No dia seguinte à sua morte iriam ao Pão de Açúcar.
A roupa que usa, o comportamento a que se determinou, a cara fechada e o passo cadenciado são os responsáveis pelos gracejos que ouve. Os galanteios são infinitamente menores do que merece. Isso atribua-se também à roupa, comportamento, cara e passo.
O Pão de Açúcar! Imagina que não será nenhum absurdo fazer o passeio hoje, domingo. Admite, inclusive, ser uma homenagem póstuma a Teófilo. Despreza o táxi que se oferece, preferindo o ônibus.
Há uma fila grande para o bondinho. A mulher de preto, no entanto, sente-se num deserto. É a única a não mostrar alegria. Não há prazer no passeio. Age no tom que se determinou: homenagem póstuma. Qualquer atitude diferente disto, encarará como pecado, quase heresia, nem sabe definir.
Turistas esbarram nela que, da janela do bondinho, olha a cidade sem maior interesse. Vê as praias repletas, os automóveis que mais parecem formigas, de tão pequeninos. Teme, por um momento, que se quebre o cabo, e o carro despenque. Afasta os olhos da paisagem, virando-se para o interior. Examina os companheiros da viagem. As famílias e os casais, alegres, tirando fotografias, fazendo piadas que imaginam engraçadas.
— O cabo vai quebrar... vai quebrar... vai quebrar...
Ridículos. Um menino faz cócegas na tia, provocando-lhe um grito, de susto.
— Xi exe miúdo foxe meu, eu o enxinava... — pensa.
Está quase arrependida do passeio.
Seus olhos param num homem sentado no canto do bondinho. Comporta-se diferente dos demais, porque se comporta igual a ela. Está só, o homem. Igual a ela. O homem lhe sorri, de modo simpático. Ela retribui e depois se arrepende. Volta à paisagem. Mas já não vê os carros nem as praias. U'a mão invisível torce-lhe o pescoço, obriga-a a virar o rosto para o canto, onde Geraldo continua sorrindo, sorrindo, sorrindo, adulto, compenetrado, cara de trabalhador, respeitável, simpático, aparentemente honesto.
Saltam no morro da Urca para trocar de bondinho. As crianças correm na frente, querendo lugar na janela. Os pais tentam alcançá-las. Os casais têm menos pressa. No fim do grupo, Fátima e Geraldo. Olham-se com respeito, com esperança, com temor e quase carinho. Ele lhe dá passagem. Ela entra no bondinho, já admitindo comprar uma blusinha estampada que viu anteontem numa vitrine, no Estácio.
Geraldo sorrindo, sorrindo, sorrindo, adulto, compenetrado, cara de trabalhador, respeitável, simpático, aparentemente honesto, sorrindo, sorrindo...
Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.
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