domingo, 13 de setembro de 2009

Antonio Olinto (A Viagem)



Já estavam no mar há muito tempo, Suliman, que marcava os dias a faca numa pilastra de madeira, dizia que eram vinte e oito, quatro semanas, certa manhã o navio amanheceu parado, Mariana saiu para o convés, o mar parecia um pano estendido até lá longe, nada se mexia, as velas pendiam murchas, não havia vento nem ondas, os homens se debruçavam sobre a amurada, a filha de Dona Júlia riu no seu jeito e disse:

- Já era tempo, não agüentava mais aquelas sacudidelas o dia inteiro.

Suliman olhou para ela sério:

- Não diga o que não sabe, moça. O pior que pode acontecer num veleiro é falta de vento.

Contudo houve uma alegria geral naqueles primeiros dias, Mariana brincou mais à vontade, o mulato pernambucano bateu num atabaque até tarde, Maria Gorda jogou uma coisa no mar, seria presente para Iemanjá?, a avó lembrou-se com nitidez de uma velha imagem, a do momento em que o homem que a levara de canoa de Abeokutá a Lagos apontara para longe e dissera: Olha. A lagoa estava tão quieta como este mar de agora, e o que vira fora o conjunto de casas da cidade em que o tio a vendera. Durante vários dias o vento não veio, o mar não se moveu, depois de uma semana de imobilidade o capitão pediu que todos se reunissem no convés, apareceu e explicou:

- Estamos numa zona de calmaria. Nossa água dá para mais de oito meses e quanto à comida não há problema, cada um trouxe o que podia e o navio tem provisões para muito tempo.

Os homens comentavam que não se via mais o Cruzeiro do Sul, durante o dia muita gente pescava, apareceram caniços e anzóis, um crioulo forte chamado Rodrigo pegava peixes enormes e um dia descobriu que mariscos se haviam agarrado ao casco do navio imóvel, desceu até lá numa corda, arrancou os mariscos, pediu a Epifânia que os fervesse e juntou amigos para partilharem do prato. Mariana olhava o céu, nunca vira tantas estrelas, algumas riscavam a noite, o capitão conversava com ela e falava-lhe dos outros planetas, das estrelas cadentes, de outros mundos, de sóis, de cometas.

A alegria dominou durante outra semana ainda o navio, mas foi-se diluindo em pedaços cada vez maiores de silêncio, Mariana começou a sentir moleza no corpo, mulheres e crianças deixaram de sair normalmente ao convés, só os homens é que andavam de um lado para o outro, ficavam olhando o mar parado, alguns mascavam fumo, à noite quase todos bebiam cachaça, então voltava a aparecer um pouco de alegria. O primeiro a ficar doente foi o mulato de Pernambuco, um dia não saiu da cama, o capitão foi vê-lo, a menina ouviu a palavra desinteria, e logo havia mais três doentes, uma das irmãs Borges em vez de coco fez sangue , levaram o vaso para o capitão ver, apareceram remédios surgidos não se sabia de onde, Epifânia tratou de Luzia Borges com todo o cuidado, a avó não abandonava o seu lugar, imóvel num canto da cama, às vezes encolhida, Epifânia era quem fazia agora toda a comida, a água tinha hora certa, vinha numa tina grande que um marinheiro trazia e distribuía para cada um, Mariana voltou a subir ao convés, encontrou todos os malês curvados no chão, rezando em direção a Meca, levantavam-se de vez em quando, tornavam a se ajoelhar, Sulivan ficara mais magro, suas roupas davam a impressão de ter crescido, Mariana acostumou-se a passar horas olhando o mar, Mariana e o mar, perdia-se nele, esquecia as coisas, revia a enchente do Piau, a cara de Padre José, os olhos de vidro do carneiro morto, sentia-se tonta em certos momentos e então voltava a ver o mar, Mariana e o mar, parecia-lhe que o navio se movimentava, mas não, tudo estava quieto, no dia seguinte levou um pedaço de pano para um lugar mais alto, perto do leme, estendeu o pano sobre uma tábua, deitou-se e ficou olhando o mar assim, os dois olhos viam o horizonte igual, perdeu a fome, Epifânia teve de ir buscá-la, deu-lhe comida à força, Emília e Antonio brincavam menos, o cheiro lá embaixo começava a ficar forte, era de azedo, coisa podre, depois de alguns minutos a gente se acostumava, não pensava mais naquilo, a farinha com arroz se atulhava na garganta, fazia a menina tossir, não havia água para lavar as mãos depois da comida, Mariana regressava a seu posto e esperava anoitecer, muita gente passava a noite no convés, de manhã quase ninguém saía do lugar, o capitão distribuía água e bolachas, a menina ia ver a mãe e a avó, o número de doentes aumentava. Epifânia enxugava o rosto dos de cama, limpava a boca de Luzia Borges, uma noite os tambores soaram com mais força, houve dança no meio do porão, marinheiros com facas na cintura ficaram parados vendo os passageiros dançarem, um dia Mariana não conseguiu acordar direito, a mãe deu-lhe água e biscoitos, mais tarde ferveu um pedaço de carne-seca, a menina mastigou com cuidado, não sabe quanto tempo esteve ausente da vida no navio, lembra-se de uma noite de luar, então já estava boa, o mar parecia continuar o convés, a água se imobilizava iluminada.

A primeira morte ocorreu quando a calmaria durava mais de mês, foi de um preto de Alagoas, tinha sido dos mais silenciosos, deixara de comer, como viajava sem família ninguém lhe deu atenção, amanheceu morto, o capitão mandou que o corpo fosse levado para cima dentro de um lençol, Mariana seguiu o acompanhamento, no convés os rostos olhavam para a cara do morto, um marinheiro rezou um Padre-Nosso e uma Ave-Maria em voz alta, os homens que seguravam o lençol levaram-no até a borda do navio, deixaram o morto escorregar, mas o corpo não afundou, ficou boiando, daí a pouco havia peixes que atacavam o cadáver, o capitão disse que deviam ter amarrado um peso no morto, só que não havia muita coisa pesada a bordo que pudesse ser dispensada, os homens ficaram olhando o morto ser arrastado pelos peixes, depois cada um voltou para sua cama, poucos foram os que , na amurada, continuaram de olhos na luta sobre o mar. O segundo morto foi o mulato de Pernambuco, acharam-no no convés com pedaços de biscoito nas mãos, a boca parecia ter sido detida no ato de mastigar, quando seu corpo caiu nas águas um pedaço de pano saiu boiando sobre o liso da superfície. Morreu em seguida a menina Joana, irmã de Abigail, tinha chorado muito durante dias seguidos, uma tarde ficou quieta. Depois de três meses sem vento seis pessoas haviam morrido, Catarina fazia agora questão de subir de manhã para o convés, tomava sol apoiada pela filha e pelos netos, no fundo do pensamento passara a só ver a chagada a Lagos, nada mais existia, mortes não a tocavam, sol e comida, sim, eram importantes, comia com decisão, mastigava bem a farinha e o arroz, às vezes um orobô, pedia que a levassem para a cama no momento em que o sol ficava demasiadamente forte, fechava os olhos e concentrava-se na espera. Diziam que o navio se movera fora do caminho, uma tarde morreu um dos malês, os outros rezaram para o morto, amarraram-lhe os pés, com pedaços de pedra achados no porão, o corpo mergulhou no mar num mergulho sem ruído, Mariana arrastava-se muitas vezes pelo chão, a mãe segurou-lhe o rosto um dia, olhou-a espantada, disse:

- Minha filha, você está com treze anos.

Estava. Sentia-se mais velha, só queria conversar com Abigail, que já era moça, mas de vez em quando corria para perto dos irmãos menores, doida para brincar de roda, ou passava horas sem dizer nada, fitando os objetos, as pessoas, o mar era como se fosse um enorme assoalho brilhante, dava a impressão de que qualquer um podia andar por cima dele. Notou que a comida tinha diminuído, o capitão andava com um revólver aparecendo e chegou o dia em que morreram duas pessoas de uma vez. Mariana estava meio dormindo quando ouviu a notícia. A voz de Maria Gorda tinha um tom de susto:

- Esta noite partiram dois: o Sebastião e o filho do Ribeiro.

A menina foi ver o lugar em que dormia a família Ribeiro, faltava o menino que sempre estivera no grupo, quis achar o Sebastião, um perto magro, de barbicha, e não o encontrou. Soube que os dois tinham sido atirados ao mar durante a noite.

O vento, quando começou a chegar, não parecia suficiente para empurrar o navio. O ar se agitou ligeiramente por muitos dias, os marinheiros entraram numa atividade incessante, quase ninguém comia mais a bordo, o cheiro de fezes se acentuava em certos lugares, o capitão comandou três homens para limparem tudo, jogavam água no porão, no convés, esfregaram o chão com vassouras, mesmo assim morreram três pessoas numa só tarde, num momento em que as ondas se formavam e o navio começava a jogar. Duas velhas e um velho, em que Mariana jamais havia reparado, envoltos em lençóis foram levados para cima, a capitão rezou por eles, desta vez o barulho dos corpos no mar soou nítido no início da noite. E logo os tambores bateram com violência, a avó percebeu que era o toque dos eguns, o axexê dos mortos, mas também era um toque de alegria, dos eguns passaram os atabaquistas a bater para Iansã, Abigail saltou para o meio do porão, dançou forte no assoalho velho, agitou as mãos num abandono, cantou em iorubá. Na manhã seguinte o navio andava, as velas se sacudiam no ar, as cordas balançavam de um lado para o outro, o convés ficou cheio, os rostos negros tomavam sol, pouco se falava, ao meio-dia a comida foi comida com entusiasmo, Epifânia botou dendê no peixe seco, reuniu os filhos ao redor de si, Mariana, Emílai e Antonio comeram em silêncio, as mãos pegavam no peixe, punham farinha no dendê, amassavam tudo até que se formasse um bolo, depois metiam na boca, Emília era a mais delicada, não limpava as mãos no vestido, Mariana encostou-se no corpo da avó depois de comer, ficaram ali de torpor, sentindo o vento que atravessava o convés.

O navio pegou vento durante muitos dias, às vezes vento forte, poucos podiam atravessar o convés em segurança, Maria Gorda levou um tombo. Mariana lembrou-se da queda de Susana na ladeira da Bahia, ela rira de não conseguir parar, hoje não achava graça nas coisas, as contrário, apesar do vento e da animação que voltava a bordo, a menina continuava a sentir o corpo mole, sem vontade de fazer coisa alguma, comer chegava a ser esforço. O vento já soprava há suas semanas quando morreu um marinheiro, foi a última das mortes na viagem, diziam que o homem passara dias sem tomar conhecimento do mundo, a reunião para jogar o corpo no mar se fez quase com raiva, os passageiros olhavam sérios para o lençol, cada um voltado para o rosto quase roxo do morto, carecia atirá-lo o mais depressa possível nas águas, enquanto o faziam era como se soubessem que não haveria outras mortes e tornava-se necessário acabar depressa com aquela, dispor do cadáver rápido e concentrar a atenção no vento que lavava o navio em subidas e descidas sobre as ondas, a tempestade que se abateu sobre ele naquela noite não provocou medos, vento e chuva não permitiam que a embarcação se detivesse, a calma da manhã seguinte foi que assustou, mas o vento continuava a bater nas velas.

Fonte:
OLINTO, Antonio. A casa da água. RJ: Bloch, 1969
Imagem = Toucan Art

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