dedicado a Rosário Fusco
I
Se a seta da beleza nos acerta
e em êxtase pairamos de repente,
Que mão ou que inefável nos desperta
da vida e sua lógica inclemente?
Cada manhã o mesmo sol nos cobre
e sempre o mesmo é o ar de que vivemos.
A alma se encolhe, cada vez mais pobre.
A boca, já nem sabe o que comemos.
Olhamos no jardim flores murchando
e no pomar nem nos importam frutos.
As horas morrem, nem sabemos quando.
Rendemos (e a que reis!) honra e tributos.
De súbito de nós nos ressurgimos:
O belo vem do sol do que já vimos.
II
O belo vem do sol do que já vimos,
em nós e sobre nós mantendo acesa
nossa alma a equilibrar-se em seus arrimos
de formas e quinhões da natureza.
Do núcleo desse sol descem imagens,
que expostas frente a nós e contrapostas
uma a outra desdobram-se em paisagens
de angras ou de vergéis, de céus, de encostas...
Imersos, a seguir esse cortejo
de imagens ora claras, ora em fumo,
no fim já nem sabemos a que ensejo
bebemos da emoção em febre o sumo.
E o belo vindo a nós como em sigilo,
Sentímo-lo, mas como transmiti-lo?
III
Sentímo-lo, mas como transmiti-lo,
esse frêmito, a alguém, se é regra termos
também ao ver e ouvir um nosso estilo
e projetarmos sombras de ilhas, de ermos?
Tanta coisa em comum: instintos, fala.
Vamos, um de outro, cada vez mais perto,
e ao nos calarmos, do silêncio exala
o hálito de quem prega no deserto.
Quão próximos um do outro, e quão distantes,
no abraçar, quão pouco o abraço abarca.
Tudo como se em grei de semelhantes
Cada um levasse à fronte a própria marca.
E mesmo o nosso ser, se o descobrimos,
Pisamos ora abismos, ora cimos.
IV
Pisamos ora abismos, ora cimos,
por mantermos nos pés pássaros tontos.
Um passo a mais - se não nos sucumbimos,
já o próximo hesita entre dois pontos.
Um pé pisando o sonho e o outro o provável,
do que há de vir adiante nos perdemos.
O mar convida com seu dorso instável
a singrá-lo, e ilusões são nossos remos.
Se subimos, aguardam-nos descidas
e o chão pode fugir aos nossos passos.
Descemos, o horizonte são subidas,
e no alto nos esmagam os espaços.
Mundo belo e falaz... Ao vê-lo e ouvi-lo,
o olhar, ora é inquieto, ora tranqüilo.
V
O olhar, ora é inquieto, ora tranqüilo,
que os olhos, nesse câmbio ou livre jogo,
sem nunca se deter nisto ou naquilo,
têm no seu centro essências de água e fogo.
Se eles fechamos, salta do invisível
e seus porões de adormecidas brasas,
um território a erguer-se ao plano, ao nível
daquele a que se vai com nossas asas.
E o invisível, no que será o centro
de nós, se mostra em formas, cenas, vultos
girando num caleidoscópio dentro
de nós, em planos claros, bem que ocultos.
Mas do que vemos e é por nós aceito,
pouco nos toca o inédito e o perfeito.
VI
Pouco nos toca o inédito e o perfeito
quando o que é novo é por si só o novo
sem ter com que ferir-nos a alma e o peito,
sem o pulsar de um túmulo ou de um ovo.
E o que é perfeito é como o fruto exausto
que cai da árvore mais do que maduro,
a si mesmo se dando em holocausto
por se bastar no seu esmero puro.
Mas nós, trazendo às costas nossa história
de erros a gerar erros; nós, expulsos
do Paraíso, nós somos a memória
de árduas jornadas, com grilhões nos pulsos.
E o perfeito não é da alma repasto,
se a perfeição se erige em templo gasto.
VII
Se a perfeição se erige em templo gasto
(gasto - que não se pense em tempo, danos -
gasto por nada mais dizer no vasto
domínio em que se erguera um dia, há anos),
acaba por cansar-nos... É que ilude
um céu de muito azul, onde encontramos
por instantes o gozo, a plenitude,
e em pouco mais, são outros os reclamos
do coração saciado. Que a nós venha
um outro céu de nuvens e tristezas,
e assim de nossas almas o céu tenha
as cismas e a linguagem a ele presas.
O antes não visto em nós não faz efeito,
se o inédito a si mesmo está sujeito.
VIII
Se o inédito a si mesmo está sujeito
e surge qual de planta sem raízes,
traz todos os sinais do que foi feito
e não do que se criou, nos seus matizes.
Terá do belo o tom, e até o canto
de música ritmada em sons forjados,
que ouvimos como a ouvir um contracanto
de pássaros sutis, mas ensinados.
Terá do belo a plástica, o contorno,
e nuanças de paisagens longe, belas,
a fazer-nos erguer um olhar morno
de quem olha miragens sem crer nelas.
Far-se-á do sonho lúbrico, mas casto,
além de ser a sua sombra e rasto.
IX
Além de ser a sua sombra e rasto,
tem de Narciso a converter-se em templo
de si mesmo, quem faz de espelho e pasto
o próprio ser e a si tem como exemplo.
O travo solitário, o de um eunuco,
sobre seu peito é vácuo, é tédio, é peso.
Da vida o que ele extrai é neutro suco
De acre ou nenhum sabor a que vai preso,
E seus passos, seus passos indo em torno
de si mesmo, ressoam no vazio.
Se ama, mesmo no amor o ardor é morno;
se abre-se em flor, é flor de hálito frio.
E a nós, de alma votada ao que é complexo,
pouco nos toca a rosa com seu nexo.
X
Pouco nos toca a rosa com seu nexo
se as pétalas não têm por alma gêmea
o viço das auroras e, em anexo,
as vibrações da pele de uma fêmea.
O que há por trás da rosa - a carnadura,
a seiva e os tons de arco-íris seqüestrados -
é que a mergulha em favos de doçura
e vida lhe insinua aos rendilhados.
Um corpo de mulher, se nele vemos
tantas formas captadas à beleza,
não baste o culto a esses dons supremos
de Deus-Consolação á natureza.
Nele busquemos mais que a aura vazia
de pétalas e cor em harmonia.
XI
De pétalas e cor em harmonia
forma-se a rosa, e nela o odor e a essência
são porções da peçonha em que se cria
já no contorno o breve da existência.
Um corpo de mulher, na área do busto
enroscam-se nos ombros, nas axilas
e entre os seios, serpentes que sem susto
seguimos, como ao charme das pupilas.
Que seus caminhos levem-nos ao ventre
e o silvo agudo ao deslizar no bosque
da redenção, ao fim do qual se adentre
o que em nós é serpente - e ali se enrosque.
Que ali se sagra o amor, mas desconexo
se não traz de outras rosas o reflexo.
XII
Se não traz de outras rosas o reflexo,
que pode a rosa dar de estrume ao homem?
Pensemos em Adão no Éden, perplexo
ante flores que os dias não consomem.
Rosa, rosa do sexo, as suas garras
de ventosas e céus de êxtase plenos,
movendo o homem prende-o nas amarras
de um barco que fundeou na onda de Vênus
- onda em que surge a súmula do belo
e onde ressoa o canto das sereias.
Dessas amarras parte o fio ou elo
de luz que vem buscar as nossas veias.
Rosa, rosa do amor, o amor esfria
se ela não se abre em rosas de outro dia.
XIII
Se ela não se abre em rosas de outro dia
seu existir efêmero é a morte
e nem ao neutro sol da geometria
o que a faz bela não terá suporte.
Falam-nos vozes, vozes do passado;
de quanto amamos queima-nos o fogo;
o coração no peito, aprisionado,
de baque a baque enfrenta a vida, ao jogo
em que se apraz, de impulso contra impulso.
A sermos nós, nós somos o que fomos,
embora pulse em nós um ser avulso
a dar ao nosso ser proibidos pomos.
Cegos podemos ver, surdos ouvimos,
se a tudo cobre o sol do que sentimos.
XIV
Se a tudo cobre o sol do que sentimos,
chegamos mesmo à zona mais sombria
que há em nós, e por nossa, compartimos
em formas, cores, música, poesia.
Cecília a sussurrar seu eu profundo,
Vinicius em seresta ao próprio enterro,
Drummond domando a máquina do mundo,
Darcy buscando em seus acertos o erro.
E assim nos vemos, deslumbrados, bobos,
frente a um Goeldi, Guinard, Santa, Pancetti
ou Portinari; ou quando Villa-Lobos
os sons imersos no seu ser repete.
Se a tudo cobre o sol e ao sol seguimos,
o belo está no belo que já vimos.
XV
O belo vem do sol do que já vimos.
Sentímo-lo, mas como transmiti-lo?
Pisamos ora abismos, ora cimos.
O olhar, ora é inquieto, ora tranqüilo.
Pouco nos toca o inédito e o perfeito,
se a perfeição se erige em templo gasto,
se o inédito a si mesmo está sujeito
além de ser a sua sombra e rasto.
Pouco nos toca a rosa com seu nexo
de pétalas e cor em harmonia,
se não traz de outras rosas o reflexo,
se ela não se abre em rosas de outro dia.
Se a tudo cobre o sol do que sentimos,
o belo está no belo que já vimos.
Fonte:
Coroas de Sonetos.
I
Se a seta da beleza nos acerta
e em êxtase pairamos de repente,
Que mão ou que inefável nos desperta
da vida e sua lógica inclemente?
Cada manhã o mesmo sol nos cobre
e sempre o mesmo é o ar de que vivemos.
A alma se encolhe, cada vez mais pobre.
A boca, já nem sabe o que comemos.
Olhamos no jardim flores murchando
e no pomar nem nos importam frutos.
As horas morrem, nem sabemos quando.
Rendemos (e a que reis!) honra e tributos.
De súbito de nós nos ressurgimos:
O belo vem do sol do que já vimos.
II
O belo vem do sol do que já vimos,
em nós e sobre nós mantendo acesa
nossa alma a equilibrar-se em seus arrimos
de formas e quinhões da natureza.
Do núcleo desse sol descem imagens,
que expostas frente a nós e contrapostas
uma a outra desdobram-se em paisagens
de angras ou de vergéis, de céus, de encostas...
Imersos, a seguir esse cortejo
de imagens ora claras, ora em fumo,
no fim já nem sabemos a que ensejo
bebemos da emoção em febre o sumo.
E o belo vindo a nós como em sigilo,
Sentímo-lo, mas como transmiti-lo?
III
Sentímo-lo, mas como transmiti-lo,
esse frêmito, a alguém, se é regra termos
também ao ver e ouvir um nosso estilo
e projetarmos sombras de ilhas, de ermos?
Tanta coisa em comum: instintos, fala.
Vamos, um de outro, cada vez mais perto,
e ao nos calarmos, do silêncio exala
o hálito de quem prega no deserto.
Quão próximos um do outro, e quão distantes,
no abraçar, quão pouco o abraço abarca.
Tudo como se em grei de semelhantes
Cada um levasse à fronte a própria marca.
E mesmo o nosso ser, se o descobrimos,
Pisamos ora abismos, ora cimos.
IV
Pisamos ora abismos, ora cimos,
por mantermos nos pés pássaros tontos.
Um passo a mais - se não nos sucumbimos,
já o próximo hesita entre dois pontos.
Um pé pisando o sonho e o outro o provável,
do que há de vir adiante nos perdemos.
O mar convida com seu dorso instável
a singrá-lo, e ilusões são nossos remos.
Se subimos, aguardam-nos descidas
e o chão pode fugir aos nossos passos.
Descemos, o horizonte são subidas,
e no alto nos esmagam os espaços.
Mundo belo e falaz... Ao vê-lo e ouvi-lo,
o olhar, ora é inquieto, ora tranqüilo.
V
O olhar, ora é inquieto, ora tranqüilo,
que os olhos, nesse câmbio ou livre jogo,
sem nunca se deter nisto ou naquilo,
têm no seu centro essências de água e fogo.
Se eles fechamos, salta do invisível
e seus porões de adormecidas brasas,
um território a erguer-se ao plano, ao nível
daquele a que se vai com nossas asas.
E o invisível, no que será o centro
de nós, se mostra em formas, cenas, vultos
girando num caleidoscópio dentro
de nós, em planos claros, bem que ocultos.
Mas do que vemos e é por nós aceito,
pouco nos toca o inédito e o perfeito.
VI
Pouco nos toca o inédito e o perfeito
quando o que é novo é por si só o novo
sem ter com que ferir-nos a alma e o peito,
sem o pulsar de um túmulo ou de um ovo.
E o que é perfeito é como o fruto exausto
que cai da árvore mais do que maduro,
a si mesmo se dando em holocausto
por se bastar no seu esmero puro.
Mas nós, trazendo às costas nossa história
de erros a gerar erros; nós, expulsos
do Paraíso, nós somos a memória
de árduas jornadas, com grilhões nos pulsos.
E o perfeito não é da alma repasto,
se a perfeição se erige em templo gasto.
VII
Se a perfeição se erige em templo gasto
(gasto - que não se pense em tempo, danos -
gasto por nada mais dizer no vasto
domínio em que se erguera um dia, há anos),
acaba por cansar-nos... É que ilude
um céu de muito azul, onde encontramos
por instantes o gozo, a plenitude,
e em pouco mais, são outros os reclamos
do coração saciado. Que a nós venha
um outro céu de nuvens e tristezas,
e assim de nossas almas o céu tenha
as cismas e a linguagem a ele presas.
O antes não visto em nós não faz efeito,
se o inédito a si mesmo está sujeito.
VIII
Se o inédito a si mesmo está sujeito
e surge qual de planta sem raízes,
traz todos os sinais do que foi feito
e não do que se criou, nos seus matizes.
Terá do belo o tom, e até o canto
de música ritmada em sons forjados,
que ouvimos como a ouvir um contracanto
de pássaros sutis, mas ensinados.
Terá do belo a plástica, o contorno,
e nuanças de paisagens longe, belas,
a fazer-nos erguer um olhar morno
de quem olha miragens sem crer nelas.
Far-se-á do sonho lúbrico, mas casto,
além de ser a sua sombra e rasto.
IX
Além de ser a sua sombra e rasto,
tem de Narciso a converter-se em templo
de si mesmo, quem faz de espelho e pasto
o próprio ser e a si tem como exemplo.
O travo solitário, o de um eunuco,
sobre seu peito é vácuo, é tédio, é peso.
Da vida o que ele extrai é neutro suco
De acre ou nenhum sabor a que vai preso,
E seus passos, seus passos indo em torno
de si mesmo, ressoam no vazio.
Se ama, mesmo no amor o ardor é morno;
se abre-se em flor, é flor de hálito frio.
E a nós, de alma votada ao que é complexo,
pouco nos toca a rosa com seu nexo.
X
Pouco nos toca a rosa com seu nexo
se as pétalas não têm por alma gêmea
o viço das auroras e, em anexo,
as vibrações da pele de uma fêmea.
O que há por trás da rosa - a carnadura,
a seiva e os tons de arco-íris seqüestrados -
é que a mergulha em favos de doçura
e vida lhe insinua aos rendilhados.
Um corpo de mulher, se nele vemos
tantas formas captadas à beleza,
não baste o culto a esses dons supremos
de Deus-Consolação á natureza.
Nele busquemos mais que a aura vazia
de pétalas e cor em harmonia.
XI
De pétalas e cor em harmonia
forma-se a rosa, e nela o odor e a essência
são porções da peçonha em que se cria
já no contorno o breve da existência.
Um corpo de mulher, na área do busto
enroscam-se nos ombros, nas axilas
e entre os seios, serpentes que sem susto
seguimos, como ao charme das pupilas.
Que seus caminhos levem-nos ao ventre
e o silvo agudo ao deslizar no bosque
da redenção, ao fim do qual se adentre
o que em nós é serpente - e ali se enrosque.
Que ali se sagra o amor, mas desconexo
se não traz de outras rosas o reflexo.
XII
Se não traz de outras rosas o reflexo,
que pode a rosa dar de estrume ao homem?
Pensemos em Adão no Éden, perplexo
ante flores que os dias não consomem.
Rosa, rosa do sexo, as suas garras
de ventosas e céus de êxtase plenos,
movendo o homem prende-o nas amarras
de um barco que fundeou na onda de Vênus
- onda em que surge a súmula do belo
e onde ressoa o canto das sereias.
Dessas amarras parte o fio ou elo
de luz que vem buscar as nossas veias.
Rosa, rosa do amor, o amor esfria
se ela não se abre em rosas de outro dia.
XIII
Se ela não se abre em rosas de outro dia
seu existir efêmero é a morte
e nem ao neutro sol da geometria
o que a faz bela não terá suporte.
Falam-nos vozes, vozes do passado;
de quanto amamos queima-nos o fogo;
o coração no peito, aprisionado,
de baque a baque enfrenta a vida, ao jogo
em que se apraz, de impulso contra impulso.
A sermos nós, nós somos o que fomos,
embora pulse em nós um ser avulso
a dar ao nosso ser proibidos pomos.
Cegos podemos ver, surdos ouvimos,
se a tudo cobre o sol do que sentimos.
XIV
Se a tudo cobre o sol do que sentimos,
chegamos mesmo à zona mais sombria
que há em nós, e por nossa, compartimos
em formas, cores, música, poesia.
Cecília a sussurrar seu eu profundo,
Vinicius em seresta ao próprio enterro,
Drummond domando a máquina do mundo,
Darcy buscando em seus acertos o erro.
E assim nos vemos, deslumbrados, bobos,
frente a um Goeldi, Guinard, Santa, Pancetti
ou Portinari; ou quando Villa-Lobos
os sons imersos no seu ser repete.
Se a tudo cobre o sol e ao sol seguimos,
o belo está no belo que já vimos.
XV
O belo vem do sol do que já vimos.
Sentímo-lo, mas como transmiti-lo?
Pisamos ora abismos, ora cimos.
O olhar, ora é inquieto, ora tranqüilo.
Pouco nos toca o inédito e o perfeito,
se a perfeição se erige em templo gasto,
se o inédito a si mesmo está sujeito
além de ser a sua sombra e rasto.
Pouco nos toca a rosa com seu nexo
de pétalas e cor em harmonia,
se não traz de outras rosas o reflexo,
se ela não se abre em rosas de outro dia.
Se a tudo cobre o sol do que sentimos,
o belo está no belo que já vimos.
Fonte:
Coroas de Sonetos.
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